O Xadrez de Tordesilhas: Colón, «Alpedrinha», Caminha – Parte 1 – O “Príncipe”

Que me perdoe o meu amigo Rodrigo Cota pelo pseudo-plagio em que acabo de incorrer!

Que me perdoem igualmente os seus conterrâneos se por uma pequena vila do interior beirão português faço substituir a bela Pontevedra.

É que nenhum outro título assentaria tão bem ao que em seguida vou relatar, como o que me atrevo a fazer encabeçar estas linhas.

Acontece que o “puto” Jorge se criou nessa vila de Alpedrinha, corriam as primeiras décadas do século XV. Não se entendem os historiadores sobre a sua filiação nem data em que veio ao mundo. Fazendo fé na sua lápide tumular, o Jorge iria viver 102 anos! Feito digno de registo se acaso em épocas tão remotas já se bebesse cerveja Guinness e os frades copistas se entretivessem com o “estranho e fascinante mundo dos recordes”!

Sem ilusões e lendo as entrelinhas documentais, Manuela Mendonça, historiadora e a sua mais recente biografa, sistematizou em D. Jorge da Costa, Cardeal de Alpedrinha, editado em 1991, que o rapaz terá nascido provavelmente em 1416, filho de um humilde Martim Vaz e, procurando um futuro melhor terá calcorreado as estradas da vida enquanto jovem, acabando a estudar Latim, Filosofia e Teologia no Colégio de Santo Elói em Lisboa, “apadrinhado” pelo Reitor Padre João Rodrigues, e ordenado presbítero em meados dos anos 40. Sigue leyendo O Xadrez de Tordesilhas: Colón, «Alpedrinha», Caminha – Parte 1 – O “Príncipe”

Cambados: o porto da discordia

Comparação entre o recorte costeiro de Acul (Haiti) e Cambados (Galiza)
Fonte: Google Earth

Enrique Zas provou pela primeira vez ao mundo há cerca de noventa anos, que Cristóbal Colón conhecia detalhadamente os portos de Cambados e Santo Tomé, na ria de Arousa. O facto por vezes esquecido de alguns, foi-nos há dias relembrado por Rodrigo Cota, aqui mesmo em “Colonianos”.No seu livro de 1923 “Galicia, Patria de Colón”, Zas apresentou dois mapas traçados à mão: o da baía de Acul, no actual Haiti, a que Colón chamou originalmente «Porto de la Mar de Santo Tomé”; e o da enseada de “Santo Tomé do Mar”, a sul de Cambados que já levava essa designação muito tempo antes da existência do Almirante. Depois reafirmou: “es sorprendente la semejanza de este puerto de Santo Domingo (…) com el que existe en Cambados (Galicia) (…). No es pues solo la configuración sino que también el denominativo, lo que ofrece singular semejanza”.[1]

Nos comentários à entrada em “Colonianos” acima referida, já Fernando Alonso provou por imagens do Google Earth que, além de não ter havido manipulação da parte de Zas, a realidade apresenta as mesmas semelhanças da cartografia. Saliente-se que o relevante não é o serem idênticos que, de facto, não o são e só por milagre o seriam; o que se regista é a sua semelhança morfológica.

Dir-se-ia que Enrique Zas só pecou por não ter sido tão ambicioso na comparação. De facto, entrando no “mar de Cambados” (pedaço da ria frente ao porto daquele nome), as semelhanças são ainda mais gritantes. E é esta outra “prova irrefutável” da comparação entre Acul e Cambados.

Não só esta, como outra que fará o corpo deste texto, baseada na seguinte dedução lógica: se Colón honrou além-mar aquele porto galego que bem conhecia, e os Soutomaior em 100 anos dele usufruíram e por ele litigaram; então COLÓN podia ser um SOUTOMAIOR!

Vista de Cambados sobre o Oceano Atlântico

De facto, em Agosto de 1371[2] o arcebispo de Santiago, reconhecido pelos serviços daquele que fora até então o arcediago do Salnés, D. Álvaro Pais de Soutomaior, concede-lhe entre outras freguesias, Cambados e Santo Tomé (de Nogueira).

Segundo Otero Pedrayo, foi o otorgamento também feito em nome da sua mulher D. Maior de Grés e Moscoso, e em mais duas vidas que lhes sucedessem[3]. Sendo esta senhora sobrinha-neta do arcebispo, deduz-se ter este benefício sido feito, à guisa de dote do matrimónio que ocorreu durante esse mesmo ano, tendo previamente o Soutomaior renunciado aos votos religiosos, para também suceder na Casa paterna, morto que estava o irmão primogénito, precocemente e sem geração.

Conforme sugere Villaverde Román[4], essas decisões unilaterais geravam por vezes sobreposições de interesses entre o arcebispado e as ordens militares que dispunham de jurisdição nos mesmos territórios. Esse foi um dos casos que obrigou a concertação posterior com as ordens do Santo Sepulcro e do Hospital.

Independentemente do processo seguido, a vila e porto de Cambados pertenceu à Casa de Soutomaior desde 1371, na condição de foreira com jurisdição civil e criminal, “alto vajo misto ymperio com sus pechos y derechos y todas las rentas y derechuras del mar y de la tierra y el patronasgo de las yglesias y benefícios”. E da mesma forma lhes pertenceu a jurisdição do porto de Santo Tomé.[5]

Morto Álvaro Pais algures na transição para o século XV, sobreviveu-lhe a viúva que em 1416 ainda vivia na vila, no “pazo e courral deso o piñeiro”, na condição de sucessora no foro, datando desse ano uma escritura em que nomeia os netos Fernan Yañez de Soutomaior e Lope Sánchez de Ulloa, como sucessores “para después de sus dias”.[6] É de crer que se terão cumprido “esses dias” à volta de 1421, uma vez que em Junho desse ano os novos foreiros, sob o testemunho do notário de Pontevedra Alfonso Perez, acertam os pormenores da partição daqueles bens pela metade[7].

Vista sobre O Grove e entrada da enseada de Santo Tomé do Mar, com as ruinas da torre de San Sadurniño.
Foto de J. Mosteiro

Meio século se havia já passado em que os Soutomaior estiveram na posse plena de Cambados. A partir deste acordo de 1421, o aforamento daquela vila portuária e também do porto de Santo Tomé, para além do extenso rol de freguesias, coutos e lugares que lhes estava associada pela concessão do arcebispo Moscoso, passou a ser considerado “pela metade”, entre os Soutomaior e os Ulloa.

Bem sintetiza aquela época da Galiza feudal, o facto de dois nobres de relevância repartirem e estipularem entre si, que bens ficariam ao Santo Sepulcro e quais caberiam aos Hospitalários de São João! A cada um deles, ficava o encargo de 400 maravedis anuais: 200 ao Comendador de Toroño (Ordem de São João); e outros 200 ao Comendador de Pazos de Arenteiro (Ordem do Santo Sepulcro). Magra quantia para decerto bem maiores rendas que a tenência daqueles territórios gerava.

E o interesse na sua posse demonstra-se pela simples leitura das mandas testamentárias ditadas à beira da morte em 1440, pelo primeiro daqueles cavaleiros: a sua sucessão deveria caber sem reservas ao filho único, Álvaro, ainda solteiro; se aquele não viesse a gerar herdeiro legítimo, herdava a tia D. Maior de Soutomaior; e ainda depois desta, caso o “problema” subsistisse, ficaria contemplada a sucessão na Casa àquele Ulloa, mas só na condição de “que tome el apelido, e armas de Sotomayor, e que si lo ansi non ficier e que non pueda haver, ni heredar cosa alguna dello”.[8]Na opinião de Suso Vila, as referidas partições viriam, já na década seguinte, a servir de arras e dote no casamento dos primos Álvaro de Soutomaior e Maria de Ulloa, filhos respectivamente de Fernan Yañez e Lope Sánchez[9]. Procurava-se deste modo, reunir de novo o pleno de Cambados sob tutela dos Soutomaior.

Fachada do pazo que Maria de Ulloa fez reconstruir na metade final do século XV, sobre o antigo pazo onde viveu D. Maior de Grés e Moscoso até cerca de 1420

Sem que a mulher fosse capaz de engendrar um herdeiro, e talvez influenciado pelo exemplo paralelo do rei Enrique IV de quem era próximo, Álvaro de Soutomaior procurou anular o casamento junto da Santa Sé, aparentemente sem nunca o conseguir. Morreu em 1468, na defesa de Tui frente aos “irmandiños”, deixando a viúva como única foreira de Cambados. Remodelaria os velhos pazos e seria promotora da igreja de Santa Mariña do Dozo.

Entretanto, legitimado pelo falecido irmão com autorização expressa de Enrique IV[10], Pedro Madruga, com o apoio, entre outros, do arcebispo de Santiago D. Alonso de Fonseca, derrota a rebelião “irmandiña”, tomando posse de todos os bens “muebles y rraizes” que haviam pertencido àquele Álvaro de Soutomaior. Recuperado o património, serenou-se a nobreza galega nos alvores da década de 70. Só o prelado de Santiago tentava reaver os bens do arcebispado, sob o controle das linhagens mais relevantes.

Contudo em 1471 decorrido que estava exactamente um século desde a concessão inicial, o porto e “vila velha” de Cambados, juntamente com o povoado marinheiro de Santo Tomé do Mar, pareciam afastar-se irremediavelmente da Casa de Soutomaior: insinuava-se o arcebispo Fonseca à viúva Ulloa, com os olhos postos no rendoso “mar de Cambados”!

Vista sobre a entrada da baía de Acul (Haiti).
Foto de Nick Hobgood

Baseando-se em documentos do “Preito Tabera-Fonseca”, Suso Vila ressalta que a delicada situação se pretendeu resolver no seio da própria linhagem, promovendo-se o casamento da libertina viúva com outro Soutomaior, da Casa de Lantañón, filho primogénito do mariscal Sueiro Gómez. Reagiu o arcebispo a contento da amásia, prendendo os referidos cavaleiros e nela gerando Diego, futuro titular consorte do condado de Monterrey[11]. Desse modo se consumava em 1473 aquele concubinato, agravando ainda mais a honra da linhagem do defunto marido, uma vez que, como muito claramente expõe Molinero Merchán, a honestidade das viúvas fazia a honra dos homens da família, “assim como a virgindad en las doncellas y fidelidad en las casadas”.[12] Nisso concorda Suso Vila, para quem o amancebamento de Maria de Ulloa acarretar-lhe-ia a“ perda das arras, e polo tanto da metade de Cambados”.[13]

Pedro Madruga não tardaria a ocupar aquela vila portuária e todo o couto de Nogueira que lhe estava associada. Por isso muito do ódio desenvolvido entre D. Alonso de Fonseca e o futuro visconde de Tui e conde de Caminha, ter-se-á originado nesta disputa por Cambados que se manteve latente ao longo de toda a década de 70.

A instância do senhor de Soutomaior, no ano de 1474 frei Juan de Valenzuela, prior de Leão e Castela na ordem de São João de Jerusalém, apresentou no capítulo de Cuenca, a escritura de 1371, vendo confirmados o seu teor, forma e cláusulas, por se considerarem ainda úteis e proveitosas para os Hospitalários[14]. Ficava assim ganha por Pedro Álvares de Soutomaior, a batalha legal pela metade de Cambados e Nogueira.

MAR DE SANTO TOMÉ
(Nome dado por Colón em Dezembro de 1492)

É sabido que Enrique IV morreu nesse final de ano, deixando o trono de Castela numa indefinição que levou à guerra peninsular opondo Isabel e Fernando de Aragão, a Juana e Afonso de Portugal. Também é lugar-comum que aos primeiros apoiou na Galiza o arcebispo Fonseca, enquanto os segundos tiveram o suporte incondicional de Pedro Madruga. Subitamente, conseguia a guerra por Cambados, um registo ibérico insuspeitado!

Saindo embora derrotado dessa meia década de contendas, o Conde de Caminha viria ainda assim a receber o perdão dos Reis Católicos em Março de 1480, recuperando todos e “qualesquier bienes que, por cabsa de haver servido e seguido al dicho rey de Portogal, le fuesen tomados e ocupados”.[15] Por certo que o assunto dos portos de Cambados e Santo Tomé do Mar, não se resolveu com a mesma facilidade do porto de Cangas, ou das fortalezas de Soutomaior e Fornelos, sobre que não havia dúvidas acerca da sua posse efectiva antes da guerra peninsular. Fonseca, no lado vencedor, pressionava contra a pretensão de Madruga em reaver a metade daqueles territórios, e não acatava a carta[16] que nesse sentido fora enviada a Maria de Ulloa, pela chancelaria real na mesma data.Finalmente, em Abril de 1484, as demandas de um e outro lado parecem ter a solução à vista: Isabel a Católica manda nominalmente que se restitua “a don Pedro Alvarez de Sotomayor, conde de Camiña, los lugares de Cambados y Noguera”.[17]

Avança o conde mais do que a conta, ocupando igualmente a metade que lhe não competia. Reage o arcebispo em defesa da manceba e quatro meses volvidos, novo documento da rainha afasta definitivamente Pedro Madruga da metade de Maria de Ulloa.[18]  Ficava reposta a verdade legal, cabendo no entanto ao Soutomaior algum amargo de boca!Os anos seguintes testemunham o declínio do conde de Caminha, a sua hipotética morte e sucessão do primogénito D. Álvaro de Soutomaior, incapaz de suster a pressão legal imposta sobre muitos dos seus bens. Alonso de Fonseca, procurando a revanche das humilhações que sofrera às mãos do pai do novo titular da Casa, ocupava militarmente os portos atlânticos dos Soutomaior: Cangas e Cambados. A morte de Álvaro, assassinado em 1495, marca o fim da posição dominante da linhagem no trato de mar das rias galegas.

SANTO TOMÉ DO MAR
(Nome antigo e ainda em uso para o «mar de Cambados»)

Nessa altura porém, é de crer que Pedro Madruga vivia ainda, sob a identidade de Cristóbal Colón, procurando reconstruir um novo potentado marítimo para senhorear enquanto “Visorey y Governador General” , e oito anos não eram suficientes para esquecer o orgulho de um século. Santo Tomé do Mar de Cambados por certo continuaria a ser a “menina dos olhos” do Almirante.

A 21 de Dezembro de 1492, reconhecendo a costa do Haiti, deslumbrava-se com certo porto, “hermosíssimo” no seu parecer, cuja entrada desde o mar pareceria “impossible a los que non hubiesen en él entrado, por unas restingas de peñas que pasan desde el monte hasta casi la isla, y no puestas por orden, sino unas acá y otras acullá, unas a la mar y otras a la tierra”.[19] Podia ser o retrato da entrada desde o Atlântico, no mar de Cambados… em Santo Tomé do Mar.

Descrevia ainda que a Oeste da entrada do porto havia um canal com uma boca que dava acesso a uma enseada ideal “para todos los ventos que puedan ventar”, fechada e profunda. A “boca” que a guardava era “muy cerrada de dos restingas de piedra que escassamente la ven sobre agua”. Parecia ter sido feita à mão, deixando “una puerta abierta cuanto los navios puedan entrar”. Só quem nunca viu a enseada de Santo Tomé do Mar e as suas ilhotas rasas à água guardadas pelos escombros de San Sadurniño, pode deixar de reconhecer aqueles traços familiares descritos por Colón

Na posse do diário do Almirante, pôde o padre Bartolomeu de Las Casas resumir o sentir maravilhado do descobridor[20]: “Es el mejor del mundo; púsole nombre el Puerto de la Mar de Santo Tomé, porque era hoy su dia[21]: dijole mar por su grandeza”.


[1] Zas, E. (1923). Galicia, Patria de Colon. (C.P.-C. Habana, Ed.) Habana, Cuba, pp. 32-33.

[2] Rodríguez González, A. (1992). Documentación Medieval del Archivo Histórico Diocesano de Santiago. Compostellanum XXXVII, Nº 3-4, pp. 381

[3] Otero Pedrayo, R. (1951). Bienes y derechos de los caballeros sanjuanistas en tierra de Morrazo y villa de Pontevedra. El Museo de Pontevedra, VI, pp. 33

[4] Villaverde Román, X. C. (1999). As xurisdiccións nas freguesías moañesas durante a Idade Media. (B. P. Moaña, Ed.) Obtido em 26 de Maio de 2012, de Biblioteca Publica de Moaña: http://moana.servidores.net/libros/freguesias.htm

[5] Tato, I. G. (2004). Las Encomiendas Gallegas de la Orden Militar de San Juan de Jerusalén. Estudio y edición documental (Vol. I). Santiago de Compostela, Galicia: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Xunta de Galicia, Instituto de Estudios Gallegos «Padre Sarmiento», pp. 59

[6] ibidem, pp. 61

[7] Martínez, C. P. (2007). Documentos da Orde do Santo Sepulcro en Galicia. Anuário Brigantino, 30, pp. 220-221

[8] Vila, S. (2010). A casa de Soutomaior (1147-1532) (1ª ed.). Noia, Galicia: Editorial Toxosoutos, pp. 448-449

[9] ibidem, pp. 274

[10] ibidem, pp. 461-465

[11] ibidem, pp. 288-289

[12] Molinero Merchán, J. A. (2007). El convento de Santa Clara de la Columna de Belalcázar. Estudio Histórico-Artístico. Córdoba, España: Diputación Provincial de Córdoba – Delegación de Cultura, pp. 62

[13] Vila, S. (2010), pp. 274

[14] Tato, I. G. (2004), pp. 259

[15] La Torre, A., & Fernandez, L. S. (1960). Documentos referentes a las relaciones con Portugal durante el reinado de los Reyes Catolicos (Vol. II). Valladolid, España: Consejo Superior de Investigaciones Cientificas. Patronato Menedez Pelayo, pp. 22-25

[16] AGS. RGS,LEG,148003,343. 7 de Março de 1480

[17]  La Torre, A., & Fernandez, L. S. (1960), pp. 289

[18] Vila, S. (2010), pp. 275

[19] Navarrete, M. F. (1858). Coleccion de los viajes y descubrimentos que hicieron por mar los españoles desde fines del siglo XV (2ª ed., Vol. I). Madrid, España: Imprenta Nacional, pp. 248-249

[20] ibidem, pp. 253

[21] A co-relação entre a data e a festa litúrgica do santo é um facto circunstancial, e não justifica por si só a designação escolhida, face à associação dos termos “Porto” e “Mar”, e à evidente semelhança geográfica com o “mar de Cambados”.

 

O Xadrez de Tordesilhas: Colón, “Alpedrinha”, Caminha – Parte 2 – A “malha”

No jogo de Tordesilhas, prova-se a rede tentacular do rei de Portugal através do capítulo CLXVIII da Chronica dos Valerosos, e Insignes Feitos Del Rey Dom Ioam II, de Gloriosa Memoria, escrita pelo português Garcia de Resende nos anos 1530-34, no qual se pode ler que D. João II “(…) tanta parte tinha no conselho del Rey, e da Raynha de Castella, que tudo lhe logo era revelado antes de se fazer, e tinha maneira que ao Duque do infantado, e a outros senhores mandava dadivas, e merces publicas, pera os Reys de Castella se guardarem, e nam fiarem delles, porque sabia que não erão os do seu secreto, e aos de que mais se fiavão dava merces tão grandes, e tão secretas, que todolos conselhos e segredos lhe erão descubertos primeiro que nenhuma cousa se fizesse”.

Vinte anos mais tarde, Bartolomeu Las Casas mostrava-se indignado com a deslealdade portuguesa, reproduzindo e pormenorizando este texto no capítulo 87 da Historia de las Índias “(…) para aviso de los Reyes (…)” e concluindo-o com um desabafo em que refere “(…) cuánta es la maldad de los infieles consejeros, y como los Reyes viven y gobiernan en mucho trabajo”.

Veja-se o exemplo do Dr. Rodrigo Maldonado de Talavera, Ouvidor do Conselho dos Reis Católicos e um dos subscritores de Tordesilhas pela parte de Castela. Negociara já com Portugal o pacto de Alcáçovas-Toledo, passou a receber uma tença anual de 6 escravos “de 15 a 30 anos” do rei de Portugal desde Abril de 1483 (confirmada em 1497 por D. Manuel I) e foi um dos elementos escolhidos para integrar a Junta de Salamanca que três anos mais tarde avaliou negativamente o projecto de Colón. Citemos, uma vez mais Manuel Rosa: “Para que pagava D. João II ao Doutor Rodrigo Maldonado uma tença anual se não recebia nada de recompensa?”

Pela nossa parte, defensores de um Almirante a quem certo bufão do Imperador Carlos V chamará“ladrón que desesperó”, a pergunta vai ainda mais além: a quem serviu, na realidade, essa recusa da Junta de 1486, senão os interesses de um Portugal que se vira então confrontado com a fuga de informação que Colón procurava oferecer a Castela?

Conjecturas à parte, analisemos alguns dos elementos da “rede” de Tordesilhas.

Quem era nesse tempo mestre-sala de Isabel, a Católica? Martim de Távora, o irmão da Condessa de Caminha, “fugido” ou “enviado” para Castela anos antes, a coberto do “expurgo” do reino arquitectado por D. João II. Estava casado com Leonor Correia, irmã do capitão donatário da ilha açoriana da Graciosa e que já o fora de Porto Santo, Pedro Correia que a história colombina celebrizou como o cunhado do Almirante que segundo o mesmo Las Casas “(…) le certifico que en la isla de Puerto Sancto había visto outro madero venido com los mismos vientos y labrado de la misma forma, e que también havia visto cañas muy gruesas, que en un coñuto dellas pudieran caber trez azumbres de agua o de vino”.

Estas relações familiares estão registadas nos principais nobiliários portugueses e por elas se deduz a singular afirmação de que tanto Cristóbal Colón como o Conde de Caminha D. Pedro Alvarez de Sotomayor se podiam considerar, à luz das linhagens de antanho, como “cunhados” daquele Pedro Correia!

Já os deste apelido gravitavam entre o senhorio de Fralães, nos arredores de Barcelos e o de Goián, no sul da Galiza, nas margens do Minho frente à fortaleza de que era titular o Visconde D. Leonel de Lima, parente próximo e grande aliado do Conde de Caminha. Oriundos deste último solar, dois Gomes Correia, pai e filho, actuavam respectivamente como escudeiro e tesoureiro do Cabido de Tui, às ordens dos Sotomayor, conforme documentação levantada por Maria Sánchez Carrera em El Bajo Miño en el siglo XV. El Espacio y los Hombres, edição de 1997.

Manuel José da Costa Felgueiras Gaio, genealogista maior do século XIX português, identifica no seu Nobiliário de Famílias de Portugal, dois irmãos de parentesco muito próximo com todos os anteriores, apresentando a particularidade de serem netos de ambas as Casas – Fralães e Goián: Francisco e Gonçalo Correia. O primeiro contraiu matrimónio com uma sobrinha do “Cardeal de Alpedrinha”; o segundo foi criado do mesmo D. Jorge, não se especificando o tempo que o serviu, mas atendendo à cronologia tê-lo-á feito a partir dos anos 70 e, eventualmente, algum tempo já em Roma.

Retomemos a teia do “Príncipe Perfeito”.

Quem foram os seus dois negociadores e representantes presentes em Tordesilhas no dia 7 de Junho de 1494, na qualidade de embaixadores de Portugal? Rui de Sousa, o homem que o rei D. Afonso V enviara em Janeiro de 1475 a ” D. Fernando, e à Rainha D. Isabel, que em Valhadolid estavam em festas e justas reaes, notificando-lhes como por ser casado com a Rainha D. Joana filha legítima d’El-Rei D. Anrique, os reinos de Castella lhe pertenciam, requerendo-os e amoestando-os com as razões e protestações que n’isso cabiam, que se fossem dos ditos reinos e lh’os lheixassem livres”, segundo as palavras de Rui de Pina no capítulo CLXXIV da Chronica d’El-Rei D. Affonso V.

Quando, na sequência desta acção, o rei português invade Castela pela Extremadura, Pedro Alvarez de Sotomayor declara em Tui o sul da Galiza como terra de obediência lusa. Damião de Goes, no capítulo LII da Chronica do Sereníssimo Príncipe D. João, clarifica que “(…) se começou huma cruel guerra (…) que foy a mais crua, e sem piedade, que toda a das outras Comarcas, porque nella se fizerão muytas entradas, e danos de huma, e de outra parte, nas quaes entradas Pedralvres de Soutomayor, Gallego de nação, tomou a Cidade de Tui, e Bayona do Minho, e as teve por Portugal, com outros lugares visinhos, até fim destas guerras chamando-se Visconde de Tui, e fez continua, e brava guerra aos Gallegos, roubando, e destruindo muytos lugares de toda aquella Província.”

Essa guerra cruel, terminou na claudicação portuguesa de Toro, onde à laia de facto curioso, novamente um Correia se faz destacar, a fazer fé nas palavras de Rui de Pina, quando o Príncipe D. João na hora antes do recontro deu “(…) à sua gente por apellido S. Jorge e S. Christovão, S. Jorge por padroeiro de Portugal, e S. Christovão por devoção de Jorge Corrêa, Commendador do Pinheiro, que na mesma hora lh’o lembrou (…)”.

O que liga então este “Pedralvres de Soutomayor” a Rui de Sousa, ao lado de quem, aliás, também combateu em Toro? Igualmente sua mulher, a futura condessa D. Teresa de Távora, prima co-irmã daquele Embaixador, o que o levaria, na prática, a dirigir-se a Rui de Sousa como “Senhor meu Primo”.

Pela mesma ordem de ideias, o outro negociador de Tordesilhas, João de Sousa, seria igualmente primo do Conde de Caminha, por serem os dois embaixadores pai e filho.

Assim, envolvidos num importante assunto do reino relativo à descoberta das Índias e ao domínio dos mares, temos homens da estrita confiança de D. João II e se entendermos como certo que o titular de Caminha, Pedro Alvarez de Sotomayor, outrora conhecido como “Pedro Madruga” vivia ainda, sob a identidade do Almirante Colón, temos o “falso genovês” como charneira de todas estas personalidades: amigo do Rei, cunhado do Mestre-Sala dos Católicos, primo dos principais subscritores do texto de Tordesilhas. Para que tudo o que acima fica dito continue pleno de sentido, apenas fica por considerar qual poderia ser a relação do “Cardeal de Alpedrinha” D. Jorge da Costa, com o alter-ego de Cristóbal Colón.