Cambados: o porto da discordia

Comparação entre o recorte costeiro de Acul (Haiti) e Cambados (Galiza)
Fonte: Google Earth

Enrique Zas provou pela primeira vez ao mundo há cerca de noventa anos, que Cristóbal Colón conhecia detalhadamente os portos de Cambados e Santo Tomé, na ria de Arousa. O facto por vezes esquecido de alguns, foi-nos há dias relembrado por Rodrigo Cota, aqui mesmo em “Colonianos”.No seu livro de 1923 “Galicia, Patria de Colón”, Zas apresentou dois mapas traçados à mão: o da baía de Acul, no actual Haiti, a que Colón chamou originalmente «Porto de la Mar de Santo Tomé”; e o da enseada de “Santo Tomé do Mar”, a sul de Cambados que já levava essa designação muito tempo antes da existência do Almirante. Depois reafirmou: “es sorprendente la semejanza de este puerto de Santo Domingo (…) com el que existe en Cambados (Galicia) (…). No es pues solo la configuración sino que también el denominativo, lo que ofrece singular semejanza”.[1]

Nos comentários à entrada em “Colonianos” acima referida, já Fernando Alonso provou por imagens do Google Earth que, além de não ter havido manipulação da parte de Zas, a realidade apresenta as mesmas semelhanças da cartografia. Saliente-se que o relevante não é o serem idênticos que, de facto, não o são e só por milagre o seriam; o que se regista é a sua semelhança morfológica.

Dir-se-ia que Enrique Zas só pecou por não ter sido tão ambicioso na comparação. De facto, entrando no “mar de Cambados” (pedaço da ria frente ao porto daquele nome), as semelhanças são ainda mais gritantes. E é esta outra “prova irrefutável” da comparação entre Acul e Cambados.

Não só esta, como outra que fará o corpo deste texto, baseada na seguinte dedução lógica: se Colón honrou além-mar aquele porto galego que bem conhecia, e os Soutomaior em 100 anos dele usufruíram e por ele litigaram; então COLÓN podia ser um SOUTOMAIOR!

Vista de Cambados sobre o Oceano Atlântico

De facto, em Agosto de 1371[2] o arcebispo de Santiago, reconhecido pelos serviços daquele que fora até então o arcediago do Salnés, D. Álvaro Pais de Soutomaior, concede-lhe entre outras freguesias, Cambados e Santo Tomé (de Nogueira).

Segundo Otero Pedrayo, foi o otorgamento também feito em nome da sua mulher D. Maior de Grés e Moscoso, e em mais duas vidas que lhes sucedessem[3]. Sendo esta senhora sobrinha-neta do arcebispo, deduz-se ter este benefício sido feito, à guisa de dote do matrimónio que ocorreu durante esse mesmo ano, tendo previamente o Soutomaior renunciado aos votos religiosos, para também suceder na Casa paterna, morto que estava o irmão primogénito, precocemente e sem geração.

Conforme sugere Villaverde Román[4], essas decisões unilaterais geravam por vezes sobreposições de interesses entre o arcebispado e as ordens militares que dispunham de jurisdição nos mesmos territórios. Esse foi um dos casos que obrigou a concertação posterior com as ordens do Santo Sepulcro e do Hospital.

Independentemente do processo seguido, a vila e porto de Cambados pertenceu à Casa de Soutomaior desde 1371, na condição de foreira com jurisdição civil e criminal, “alto vajo misto ymperio com sus pechos y derechos y todas las rentas y derechuras del mar y de la tierra y el patronasgo de las yglesias y benefícios”. E da mesma forma lhes pertenceu a jurisdição do porto de Santo Tomé.[5]

Morto Álvaro Pais algures na transição para o século XV, sobreviveu-lhe a viúva que em 1416 ainda vivia na vila, no “pazo e courral deso o piñeiro”, na condição de sucessora no foro, datando desse ano uma escritura em que nomeia os netos Fernan Yañez de Soutomaior e Lope Sánchez de Ulloa, como sucessores “para después de sus dias”.[6] É de crer que se terão cumprido “esses dias” à volta de 1421, uma vez que em Junho desse ano os novos foreiros, sob o testemunho do notário de Pontevedra Alfonso Perez, acertam os pormenores da partição daqueles bens pela metade[7].

Vista sobre O Grove e entrada da enseada de Santo Tomé do Mar, com as ruinas da torre de San Sadurniño.
Foto de J. Mosteiro

Meio século se havia já passado em que os Soutomaior estiveram na posse plena de Cambados. A partir deste acordo de 1421, o aforamento daquela vila portuária e também do porto de Santo Tomé, para além do extenso rol de freguesias, coutos e lugares que lhes estava associada pela concessão do arcebispo Moscoso, passou a ser considerado “pela metade”, entre os Soutomaior e os Ulloa.

Bem sintetiza aquela época da Galiza feudal, o facto de dois nobres de relevância repartirem e estipularem entre si, que bens ficariam ao Santo Sepulcro e quais caberiam aos Hospitalários de São João! A cada um deles, ficava o encargo de 400 maravedis anuais: 200 ao Comendador de Toroño (Ordem de São João); e outros 200 ao Comendador de Pazos de Arenteiro (Ordem do Santo Sepulcro). Magra quantia para decerto bem maiores rendas que a tenência daqueles territórios gerava.

E o interesse na sua posse demonstra-se pela simples leitura das mandas testamentárias ditadas à beira da morte em 1440, pelo primeiro daqueles cavaleiros: a sua sucessão deveria caber sem reservas ao filho único, Álvaro, ainda solteiro; se aquele não viesse a gerar herdeiro legítimo, herdava a tia D. Maior de Soutomaior; e ainda depois desta, caso o “problema” subsistisse, ficaria contemplada a sucessão na Casa àquele Ulloa, mas só na condição de “que tome el apelido, e armas de Sotomayor, e que si lo ansi non ficier e que non pueda haver, ni heredar cosa alguna dello”.[8]Na opinião de Suso Vila, as referidas partições viriam, já na década seguinte, a servir de arras e dote no casamento dos primos Álvaro de Soutomaior e Maria de Ulloa, filhos respectivamente de Fernan Yañez e Lope Sánchez[9]. Procurava-se deste modo, reunir de novo o pleno de Cambados sob tutela dos Soutomaior.

Fachada do pazo que Maria de Ulloa fez reconstruir na metade final do século XV, sobre o antigo pazo onde viveu D. Maior de Grés e Moscoso até cerca de 1420

Sem que a mulher fosse capaz de engendrar um herdeiro, e talvez influenciado pelo exemplo paralelo do rei Enrique IV de quem era próximo, Álvaro de Soutomaior procurou anular o casamento junto da Santa Sé, aparentemente sem nunca o conseguir. Morreu em 1468, na defesa de Tui frente aos “irmandiños”, deixando a viúva como única foreira de Cambados. Remodelaria os velhos pazos e seria promotora da igreja de Santa Mariña do Dozo.

Entretanto, legitimado pelo falecido irmão com autorização expressa de Enrique IV[10], Pedro Madruga, com o apoio, entre outros, do arcebispo de Santiago D. Alonso de Fonseca, derrota a rebelião “irmandiña”, tomando posse de todos os bens “muebles y rraizes” que haviam pertencido àquele Álvaro de Soutomaior. Recuperado o património, serenou-se a nobreza galega nos alvores da década de 70. Só o prelado de Santiago tentava reaver os bens do arcebispado, sob o controle das linhagens mais relevantes.

Contudo em 1471 decorrido que estava exactamente um século desde a concessão inicial, o porto e “vila velha” de Cambados, juntamente com o povoado marinheiro de Santo Tomé do Mar, pareciam afastar-se irremediavelmente da Casa de Soutomaior: insinuava-se o arcebispo Fonseca à viúva Ulloa, com os olhos postos no rendoso “mar de Cambados”!

Vista sobre a entrada da baía de Acul (Haiti).
Foto de Nick Hobgood

Baseando-se em documentos do “Preito Tabera-Fonseca”, Suso Vila ressalta que a delicada situação se pretendeu resolver no seio da própria linhagem, promovendo-se o casamento da libertina viúva com outro Soutomaior, da Casa de Lantañón, filho primogénito do mariscal Sueiro Gómez. Reagiu o arcebispo a contento da amásia, prendendo os referidos cavaleiros e nela gerando Diego, futuro titular consorte do condado de Monterrey[11]. Desse modo se consumava em 1473 aquele concubinato, agravando ainda mais a honra da linhagem do defunto marido, uma vez que, como muito claramente expõe Molinero Merchán, a honestidade das viúvas fazia a honra dos homens da família, “assim como a virgindad en las doncellas y fidelidad en las casadas”.[12] Nisso concorda Suso Vila, para quem o amancebamento de Maria de Ulloa acarretar-lhe-ia a“ perda das arras, e polo tanto da metade de Cambados”.[13]

Pedro Madruga não tardaria a ocupar aquela vila portuária e todo o couto de Nogueira que lhe estava associada. Por isso muito do ódio desenvolvido entre D. Alonso de Fonseca e o futuro visconde de Tui e conde de Caminha, ter-se-á originado nesta disputa por Cambados que se manteve latente ao longo de toda a década de 70.

A instância do senhor de Soutomaior, no ano de 1474 frei Juan de Valenzuela, prior de Leão e Castela na ordem de São João de Jerusalém, apresentou no capítulo de Cuenca, a escritura de 1371, vendo confirmados o seu teor, forma e cláusulas, por se considerarem ainda úteis e proveitosas para os Hospitalários[14]. Ficava assim ganha por Pedro Álvares de Soutomaior, a batalha legal pela metade de Cambados e Nogueira.

MAR DE SANTO TOMÉ
(Nome dado por Colón em Dezembro de 1492)

É sabido que Enrique IV morreu nesse final de ano, deixando o trono de Castela numa indefinição que levou à guerra peninsular opondo Isabel e Fernando de Aragão, a Juana e Afonso de Portugal. Também é lugar-comum que aos primeiros apoiou na Galiza o arcebispo Fonseca, enquanto os segundos tiveram o suporte incondicional de Pedro Madruga. Subitamente, conseguia a guerra por Cambados, um registo ibérico insuspeitado!

Saindo embora derrotado dessa meia década de contendas, o Conde de Caminha viria ainda assim a receber o perdão dos Reis Católicos em Março de 1480, recuperando todos e “qualesquier bienes que, por cabsa de haver servido e seguido al dicho rey de Portogal, le fuesen tomados e ocupados”.[15] Por certo que o assunto dos portos de Cambados e Santo Tomé do Mar, não se resolveu com a mesma facilidade do porto de Cangas, ou das fortalezas de Soutomaior e Fornelos, sobre que não havia dúvidas acerca da sua posse efectiva antes da guerra peninsular. Fonseca, no lado vencedor, pressionava contra a pretensão de Madruga em reaver a metade daqueles territórios, e não acatava a carta[16] que nesse sentido fora enviada a Maria de Ulloa, pela chancelaria real na mesma data.Finalmente, em Abril de 1484, as demandas de um e outro lado parecem ter a solução à vista: Isabel a Católica manda nominalmente que se restitua “a don Pedro Alvarez de Sotomayor, conde de Camiña, los lugares de Cambados y Noguera”.[17]

Avança o conde mais do que a conta, ocupando igualmente a metade que lhe não competia. Reage o arcebispo em defesa da manceba e quatro meses volvidos, novo documento da rainha afasta definitivamente Pedro Madruga da metade de Maria de Ulloa.[18]  Ficava reposta a verdade legal, cabendo no entanto ao Soutomaior algum amargo de boca!Os anos seguintes testemunham o declínio do conde de Caminha, a sua hipotética morte e sucessão do primogénito D. Álvaro de Soutomaior, incapaz de suster a pressão legal imposta sobre muitos dos seus bens. Alonso de Fonseca, procurando a revanche das humilhações que sofrera às mãos do pai do novo titular da Casa, ocupava militarmente os portos atlânticos dos Soutomaior: Cangas e Cambados. A morte de Álvaro, assassinado em 1495, marca o fim da posição dominante da linhagem no trato de mar das rias galegas.

SANTO TOMÉ DO MAR
(Nome antigo e ainda em uso para o «mar de Cambados»)

Nessa altura porém, é de crer que Pedro Madruga vivia ainda, sob a identidade de Cristóbal Colón, procurando reconstruir um novo potentado marítimo para senhorear enquanto “Visorey y Governador General” , e oito anos não eram suficientes para esquecer o orgulho de um século. Santo Tomé do Mar de Cambados por certo continuaria a ser a “menina dos olhos” do Almirante.

A 21 de Dezembro de 1492, reconhecendo a costa do Haiti, deslumbrava-se com certo porto, “hermosíssimo” no seu parecer, cuja entrada desde o mar pareceria “impossible a los que non hubiesen en él entrado, por unas restingas de peñas que pasan desde el monte hasta casi la isla, y no puestas por orden, sino unas acá y otras acullá, unas a la mar y otras a la tierra”.[19] Podia ser o retrato da entrada desde o Atlântico, no mar de Cambados… em Santo Tomé do Mar.

Descrevia ainda que a Oeste da entrada do porto havia um canal com uma boca que dava acesso a uma enseada ideal “para todos los ventos que puedan ventar”, fechada e profunda. A “boca” que a guardava era “muy cerrada de dos restingas de piedra que escassamente la ven sobre agua”. Parecia ter sido feita à mão, deixando “una puerta abierta cuanto los navios puedan entrar”. Só quem nunca viu a enseada de Santo Tomé do Mar e as suas ilhotas rasas à água guardadas pelos escombros de San Sadurniño, pode deixar de reconhecer aqueles traços familiares descritos por Colón

Na posse do diário do Almirante, pôde o padre Bartolomeu de Las Casas resumir o sentir maravilhado do descobridor[20]: “Es el mejor del mundo; púsole nombre el Puerto de la Mar de Santo Tomé, porque era hoy su dia[21]: dijole mar por su grandeza”.


[1] Zas, E. (1923). Galicia, Patria de Colon. (C.P.-C. Habana, Ed.) Habana, Cuba, pp. 32-33.

[2] Rodríguez González, A. (1992). Documentación Medieval del Archivo Histórico Diocesano de Santiago. Compostellanum XXXVII, Nº 3-4, pp. 381

[3] Otero Pedrayo, R. (1951). Bienes y derechos de los caballeros sanjuanistas en tierra de Morrazo y villa de Pontevedra. El Museo de Pontevedra, VI, pp. 33

[4] Villaverde Román, X. C. (1999). As xurisdiccións nas freguesías moañesas durante a Idade Media. (B. P. Moaña, Ed.) Obtido em 26 de Maio de 2012, de Biblioteca Publica de Moaña: http://moana.servidores.net/libros/freguesias.htm

[5] Tato, I. G. (2004). Las Encomiendas Gallegas de la Orden Militar de San Juan de Jerusalén. Estudio y edición documental (Vol. I). Santiago de Compostela, Galicia: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Xunta de Galicia, Instituto de Estudios Gallegos «Padre Sarmiento», pp. 59

[6] ibidem, pp. 61

[7] Martínez, C. P. (2007). Documentos da Orde do Santo Sepulcro en Galicia. Anuário Brigantino, 30, pp. 220-221

[8] Vila, S. (2010). A casa de Soutomaior (1147-1532) (1ª ed.). Noia, Galicia: Editorial Toxosoutos, pp. 448-449

[9] ibidem, pp. 274

[10] ibidem, pp. 461-465

[11] ibidem, pp. 288-289

[12] Molinero Merchán, J. A. (2007). El convento de Santa Clara de la Columna de Belalcázar. Estudio Histórico-Artístico. Córdoba, España: Diputación Provincial de Córdoba – Delegación de Cultura, pp. 62

[13] Vila, S. (2010), pp. 274

[14] Tato, I. G. (2004), pp. 259

[15] La Torre, A., & Fernandez, L. S. (1960). Documentos referentes a las relaciones con Portugal durante el reinado de los Reyes Catolicos (Vol. II). Valladolid, España: Consejo Superior de Investigaciones Cientificas. Patronato Menedez Pelayo, pp. 22-25

[16] AGS. RGS,LEG,148003,343. 7 de Março de 1480

[17]  La Torre, A., & Fernandez, L. S. (1960), pp. 289

[18] Vila, S. (2010), pp. 275

[19] Navarrete, M. F. (1858). Coleccion de los viajes y descubrimentos que hicieron por mar los españoles desde fines del siglo XV (2ª ed., Vol. I). Madrid, España: Imprenta Nacional, pp. 248-249

[20] ibidem, pp. 253

[21] A co-relação entre a data e a festa litúrgica do santo é um facto circunstancial, e não justifica por si só a designação escolhida, face à associação dos termos “Porto” e “Mar”, e à evidente semelhança geográfica com o “mar de Cambados”.

 

Pedro Madruga, Cavaleiro de São João de Rhodes (II) – o tempo dos navegantes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Vimos já que em meados da década de cinquenta do século XV, Pedro Álvares de Soutomaior era cónego e pertencia ao cabido da Sé de Tui…..

Atingira a maioridade (25 anos), e tinha o apoio do irmão que então já expulsara o Bispo D. Luís Pimentel e era o “generoso Senhor” que guardava a cidade “com gente de armas poderosos”, conforme cita Suso Vila n’ A cidade de Tui durante a Baixa Idade Media. Seria, por certo, o homem de confiança de Álvaro de Soutomaior, no seio do Cabido tudense e, como tal, encarregue dos negócios de importância para o bispado, nomeadamente com o norte de Portugal e o Arcebispado de Braga. Existem numerosos factos que aqui não cabem, relacionando Pedro Álvares com os vários arcebispos bracarenses do seu tempo.

Hoje relativamente bem conhecida é já a instrução do Rei Enrique IV, passada em 1465, em que o soberano manifesta a sua vontade de entregar o Arcebispado de Santiago ao bastardo dos Soutomaior, documento publicado pela primeira vez em 1904 pela Marquesa de Ayerbe no seu livro de apontamentos históricos acerca do Castillo del Marques de Mos en Sotomayor.

O que acima se escreve, aliado ao facto de Pedro Madruga ter casado em Portugal, na ressaca da revolta irmandiña de 1467 – decerto após a confirmação da sua legitimação por Enrique IV em 6 de Agosto do ano seguinte –, permite concluir que até 1468 actuou publicamente como eclesiástico. Quebrou votos, para casar com Teresa de Távora, e assumir os destinos de Soutomaior; teria então 36 anos de idade.

Entre 1634 e 1635, o Arcebispo de Braga D. Rodrigo da Cunha, refere na sua magistral História Eclesiástica dos Arcebispos de Braga, um D. João de Soutomaior, casado com uma irmã do Cardeal de Alpedrinha, chamada Isabel Gonçalves da Costa. Segundo o prelado, D. João era filho natural do Conde de Caminha. Os genealogistas portugueses do século XVII ao XIX, dizem que tivera a alcunha de “galego”, mas desconhecem-lhe geração. Mencionam um outro filho natural, D. Nuno de Soutomaior, também alcunhado de “galego”, casado com uma Isabel de que desconhecem apelido, este sim com descendência conhecida tanto em Portugal, como em Castela. Manuel Felgueiras Gaio, talvez o mais conhecido genealogista português de sempre, escrevia em princípios do século XIX, no seu Nobiliário de Famílias de Portugal, que a mãe de D. Nuno se chamava Constança Pereira e que “o Conde de Caminha a tirou do Convento quando andava em Portugal”.

Perante o que atrás se analisa, existem forte probabilidades de D. João e D. Nuno serem a mesma pessoa, e que o seu nascimento tenha ocorrido na década de sessenta do século XV, sendo seu pai eclesiástico, o que não era novidade para a época! Facilmente o cónego Pedro de Soutomaior tinha acesso às casas religiosas, e as donas nobres por ali obrigadas ao recato, muitas vezes almejavam motivo para deixar a forçada vida de claustro.

Consultando o processo de habilitação para o Santo Ofício de João José de Vasconcelos Bitancour Sá Machado, datado de 1751-52, existente na Torre do Tombo em Lisboa, pode ler-se a dado passo que uma “(…) D. Inez de Soutomaior foi irmã de D. Pedro de Soutomaior, Cavaleiro de Malta e Comendador de Torres Novas, ambos naturais da Terra da Feira, e filhos de D. Nuno de Soutomaior e de sua mulher D. Isabel, naturais da mesma Terra, o qual D. Nuno foi filho natural de D. Pedro Alvares de Soutomaior que neste Reino foi Conde de Caminha por mercê de D. Afonso V.”

Ficamos deste modo a saber que ao deixar o convento, D. Constança Pereira passou a viver na actual região de Santa Maria da Feira, cerca de trinta quilómetros a sul da cidade do Porto, território que então estava afecto à linhagem dos Pereira, à qual deveria pertencer a mãe de Constança, uma vez que o pai – sabê-mo-lo pelos genealogistas – , era Pedro Coelho, da casa dos senhores de Felgueiras que a teve de relação ilícita. A recente morte do pai no malogrado assalto a Tãnger de 1463, decerto precipitara a entrada de Constança na clausura; o amparo da família materna chegou com a desonra da ilícita maternidade.

Quebrado que foi o voto de castidade do cónego de Tui, reencontra-se a sua trajectória convergente com a Ordem de São João do Hospital que em Portugal assumia o título de Ordem do Crato, por se ter instalado o Grão-Priorado de Portugal no Convento da Flor da Rosa, perto da vila do Crato no nordeste alentejano.

Os Pereira, senhores da terra de Santa Maria da Feira, eram sobrinhos-netos do Condestável D. Nuno Álvares, o grande estratega de Aljubarrota, nascido e criado no Crato, onde seu pai era Grão-Prior, sucedendo-lhe o filho D. Pedro Álvares Pereira. Quando Nuno de Soutomaior nasceu, a linhagem ainda mantinha alguns dos seus membros como cavaleiros ou comendadores da Ordem de São João do Crato.

Pedro Coelho, por seu turno, vira um dos seus irmãos tornar-se cavaleiro hospitalário e receber a Comenda de Leça depois de combater bravamente na Ilha de Rhodes, no ano de 1444. Inspirados no exemplo do tio, João e Nuno Coelho, meio-irmãos paternos de Constança, também entraram na Ordem do Crato, sobressaindo frei João enquanto Chanceler-Mor de Rhodes e Grão-Prior do Crato, cargos que acumulou com o de Conselheiro do Rei D. Manuel I, até à sua morte, em 1515. Retiram-se estas informações de D. António Prior do Crato e outros cavaleiros da Ordem do Hospital de São João de Jerusalém, artigo publicado em 1996-97, na revista “Filermo” 5-6, por Luiz de Mello Vaz de São Payo.

Garcia Coelho, o irmão mais velho destes, morreu em combate, na derrota de Toro de 1476. Pedro Álvares de Soutomaior conhecia-o, como decerto aos outros Coelhos de Felgueiras, fosse pela sua relação com Constança, fosse pela ligação à Ordem de São João. Seguindo esta linha de pensamento, naturalmente conheceria bem Nicolau Coelho, outro dos irmãos que se viria a revelar experiente nauta, perito em navegação astronómica, um dos capitães da armada de Vasco da Gama na viagem inaugural do caminho marítimo para a Índia, e o primeiro a entrar na barra do Tejo nesse regresso triunfal.

Isabel Coelho era tia paterna de Constança. Casara com Diogo Martins Cão e no ano de 1472 viviam em São Mamede de Vila Verde, na terra de Felgueiras. A documentação que chegou até aos nossos dias, é rica em informação pontual e dispersa, referenciando pessoas de sobrenome “Cão”. Porém, salvaguardando o caso de duas linhagens, uma em Évora e Vila Viçosa, e outra em Vila Real, não permite estabelecer linhas de parentesco entre os deste apelido.

Sublinhem-se contudo, três insinuantes coincidências: Fernão Pereira, senhor da Terra da Feira era, naqueles tempos, alcaide-mor de Vila Viçosa; um homem chamado Diogo Cão celebrizou-se enquanto “descobridor do Congo”, navegando as costas de África em busca da passagem para oriente, a mando do Rei D. João II; esse homem teve um filho chamado Pedro Cão que rondaria os 18 anos quando a 1 de Agosto de 1476 um Pedro Cão, “escudeiro do Conde de Caminha”, recebia uma Carta de Perdão do Rei D. Afonso V, existente no arquivo das chancelarias régias, na Torre do Tombo em Lisboa.

Estas fontes de informação permitem identificar, sem risco de maior erro, a forte possibilidade do Diogo Cão navegador, ser parente próximo do Diogo Martins Cão, e que o escudeiro Pedro Cão fosse seu irmão, ou mesmo aquele seu filho. A ser assim, seria de relevar uma estreita relação entre Nicolau Coelho e Diogo Cão, e entre os dois e Pedro Álvares de Soutomaior.

Socorremo-nos de novo do texto de Luiz de Mello Vaz de São Payo, para uma nova aproximação aos hospitalários. Segundo hipótese apresentada com algum fundamento, Diogo Cão seria filho de Álvaro Gonçalves Cão, fidalgo da Casa de D. Afonso V, e neto de um Gonçalo Anes Cão, legitimado em 1374, filho natural de João Fernandes, escudeiro do Condestável Álvares Pereira, e Comendador da Flor da Rosa na Ordem de São João do Hospital de Jerusalém!

Tendo em atenção o que acima se equaciona, há ainda lugar a outra possível ligação do futuro Pedro Madruga, a um homem que se irá também tornar navegador, ao serviço do plano das descobertas portuguesas do século XV: Álvaro Caminha. Uma vez mais, os genealogistas portugueses não conseguiram documentar os deste apelido numa linhagem entroncada. Surgem desse modo algumas personagens dispersas que permitem intuir que na centúria de 1400 coexistiram duas linhas de Caminhas em Portugal: os Vaz de Caminha, e os Álvares de Caminha. A primeira aburguesou-se na cidade do Porto, exercendo o prestigioso cargo de Mestres da Casa da Balança da Moeda, e outros lugares de escrivania. Quanto aos segundos, parece terem surgido em Portugal no reinado de D. Afonso V, estima-se que fugidos às lutas irmandiñas dos anos sessenta.

Um facto é no entanto indesmentível: em 1453, um Álvaro Camiña era documentado num tombo do Hospital dos Pobres de Tui, como escudeiro de Álvaro de Soutomaior, conforme se pode atestar no estudo já citado de Xulián Maure Rivas. Não será risco demasiado, supor que como escudeiro dos Soutomaior, terá ficado ao serviço de Pedro Álvares quando aquele sucedeu ao irmão, morto em 1468. Em virtude da esteita relação existente com D. Afonso V, nada obsta a que Álvaro Camiña possa ter entrado ao serviço da Casa Real portuguesa, “participando em várias expedições portuguesas à costa africana”, conforme se diz na História de Portugal – Dicionário de Personalidades, obra editada em 2004 pela QUIDNOVI e coordenada pelo professor José Hermano Saraiva. O cronista português Rui de Pina, na Chrónica de El-Rei D. João II, acrescenta ainda que o soberano português “(…) ordenou mandar a Inglaterra com uma caravela bem armada Álvaro de Caminha (…) para com engano ou dissimulação, prender o dito conde [ de Penamacor ] e o trazer a estes reinos ou matá-lo (…)”, missão que prova o alto nível de confiança nele depositado. A mesma confiança que tivera o Conde de Caminha, até ao seu desaparecimento em 1486.

Finalmente, é o cronista Garcia de Resende que assinala a última missão de Álvaro de Caminha, registando que “no ano de quatrocentos e noventa e três em Torres Vedras deu el Rei a Álvaro de Caminha, cavaleiro de sua casa, a Capitania da Ilha de São Tomé de juro e herdade com cem mil reis de renda cada ano, pagos na casa da Mina.” Fazendo-se acompanhar de degredados, escravos negros, jovens cristão-novos e agricultores da Madeira, a ele se ficou a dever o início do povoamento e colonização da ilha. Morreu velho, em 1499, na enganada convicção de lhe vir a suceder o sobrinho, Pedro Álvares de Caminha.

Faço notar que a ser a mesma pessoa, regulando a idade de Álvaro de Soutomaior a quem servira de escudeiro, teria morrido em São Tomé entre os 65 e os 70 anos, e que alguns investigadores durante os séculos que desde então decorreram, o confundiram inclusive com o filho primogénito do Conde de Caminha, chamando-lhe D. Álvaro de Caminha e Soutomaior! Parece este, um caso para aplicação do ditado popular que reza “nunca haver fumo sem fogo”!