No rasto matricial do conde D. Pedro de Caminha (IV) – Constança Gonçalves, «vil» filha de alfaiate; e João Gonçalves, o outro irmão do conde de Caminha

 

João Gonçalves de Miranda Soutomaior
João Gonçalves de Miranda Soutomaior

Constança Gonçalves – “vil” filha de alfaiate, pilar da tese Pedro Madruga – Cristóbal Colón

A súmula dos factos anteriores, por demasiado incertos, permite a formulação da seguinte hipótese: sendo eventualmente a mãe de Pedro Madruga de condição social inferior, a linhagem socorreu-se da proximidade mantida com os Zúñiga, para forjar um parentesco pouco esclarecido, quiçá aceite tacitamente por ambas as partes por se não poder comprovar, dada a extensão no tempo e a morte dos protagonistas. Esse logro “garantiu” a nobreza de quatro costados aos seus descendentes, assim como identificou a política de alianças dos Soutomaior de Tui e Pontevedra, com os seus congéneres de Puebla de Alcocer e Belalcázar.

Com base neste pressuposto, e não se cumprindo o mesmo em D. Constanza de Zúñiga, ou D. Maria Vidal, merece ponderosa análise a proposta de Alfonso Philippot Abeledo, enunciada em “La Identidad de Cristóbal Colón”. Nessa tese – originalmente publicada em 1991, e derivada dos fundamentos de Celso García de la Riega sobre a origem galega do almirante das Índias -, o autor documenta na Pontevedra de 1435, uma Constança Gonçalves, que mediante cruzamento com outras actas notariais contemporâneas, seria filha do casal Afonso de Soutelo e Branca Colón. Teria como irmãos um João Gonçalves, pintor, e uma Branca Soutelo, casada com um marinheiro, todos residentes naquela vila costeira.[1] Atendendo às informações constantes dos referidos documentos, Constança Gonçalves seria filha de homem-livre que exercia o ofício de alfaiate, considerado “vil” (porque manual), segundo os conceitos sociais da época e na óptica privilegiada do clero e da nobreza. O próprio almirante Colón comprova o preconceito, quando em 1503, num desabafo escrito aos Reis Católicos na ilha de Jamaica, se lamenta que “(…) agora fasta los sastres suplican por descubrir[2].

A ponte com D. Pedro Álvares de Soutomaior estabelece-a Alfonso Philippot, não só pelo óbvio do nome próprio – igual ao mencionado nas fontes primárias, e o mesmo com que foi baptizada a filha mais nova do conde de Caminha, ao arrepio de qualquer tradição na linhagem -, como também através do apelido “Soutelo”, dado que Fernan Yañez de Soutomaior entregou em testamento a guarda e criação do filho bastardo, ao dominicano frei Esteban de Soutelo. Apoia-se o autor na opinião de José Maria Font, extraída do Diccionario de Historia de España, na qual se regista ser “bastante general en los fueros municipales la atribución de ésta guarda a los parientes más próximos del menor”.[3]

Assim sendo e respeitando cronologias, é possível deduzir um estreito parentesco entre o alfaiate Afonso e o mendicante Esteban – eventualmente irmãos -, ambos apelidados “de Soutelo”. E com este referente geográfico ocorrem dois únicos lugares na Galiza meridional, em territórios que no século XV foram dominados pela casa de Soutomaior: São Vicente de Soutelo (entre Tui e Salvaterra) e Soutelo de Montes (a Nordeste de Pontevedra, na chamada “Terra de Montes”). Ditando a lógica que deste último sobressaísse maioritariamente o topónimo “de Montes” (frei Pedro de Montes, prior em São Domingos de Pontevedra, a título de exemplo), é de apontar com maior probabilidade o primeiro, como origem destes “Soutelo”, até porque Santo Estevão é orago do vizinho lugar de Budiño, e poderá ter servido de inspiração na escolha do nome de baptismo do futuro dominicano. Pela proximidade, o convento de Tui foi o destino de Esteban. Já Afonso poderá ter trilhado o caminho da concorrida Pontevedra, quiçá ao abrigo dos Soutomaior, e ali casado dentro do seu estrato social.

De facto na primeira metade do século XV, a família de Branca Colón aparece associada à confraria de São João que agrupava carpinteiros, tanoeiros e pedreiros, ofícios de cariz acentuadamente manual. Atendendo aos casamentos de certos elementos femininos do clã – com mareantes e marinheiros da vila -, pode intuir-se a prática das artes de mar por algum dos varões. Contudo na metade final da centúria já é possível documentar mareantes e pequenos armadores de apelido “Colón”, o que não evita que a família pertencesse ao vasto grupo que via negado o acesso à oligarquia do concelho.[4]

Definindo-se então “Soutelo” como indicador de progénie, estima-se “Gonçalves” como patronímico, pois foi usado por João e Constança, dois dos filhos referenciados do casal Soutelo-Colón. Atreveu-se Philippot neste particular, ao relacioná-los com os “Gonçalves Soutelo”, uma linhagem de pequena nobreza terra-tenente que proliferava na região a sul de Ourense. Esticou um pouco mais a corda, na ânsia de invocar o parentesco destes com a condessa de Santa Marta[5], procurando cumprir as premissas do já referido texto de Vasco da Ponte[6]. No entanto o bom senso é, neste caso, demolidor, não se podendo aceitar, à luz da época, que o modesto alfaiate Soutelo fosse oriundo da mesma cepa de Nuno, “senhor da terra de Molgas e regedor de Allariz”, ou de D. Sancha, “senhora de Sandim, Xocin e Vilariño”.

João Gonçalves – o outro irmão do conde de Caminha

Estará porventura eivada de atrevimento semelhante – ou não -, a introdução neste ponto de um outro João Gonçalves, há séculos referenciado em Portugal, como familiar próximo de D. Pedro Álvares, conde de Caminha. O mais antigo documento em que é citado, acrescido dos apelidos “de Miranda” e “Soutomaior”, remonta ao ano de 1561. Trata-se de uma carta de brasão de armas concedida a Diogo de Sá, filho de Fernão de Sá Soutomaior, morador em Coimbra, e neto daquele primeiro e de sua legítima esposa D. Filipa de Sá “das geracõns e linhagens dos soutomaiores e saas que nestes Reinos sam fidalguos de cota darmas”.[7]

Carta de Brasão de Diogo de Sá (1561)
Carta de Brasão de Diogo de Sá (1561)

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Pavia e o Colón Galego

Hernando Colón garantiu preto no branco na “Historia del Almirante” que o pai, na sua juventude, aprendeu as letras e estudou num lugar chamado Pavia. Não há pois quem pretenda discorrer sobre as origens do “descobridor” que se arrogue passar ao lado desta questão assaz particular.

E se a Pavia italiana – com o seu Studio Generale fundado em 1361 – sempre foi a escolha óbvia sendo a Lombardia região vizinha da Ligúria, também logo houve quem estranhasse a frequência de tão elevado lugar a imberbe cardador de lãs. E mais se pesquisando, se não achou registo que ali colocasse o futuro navegador.

Aventou-se então que o biógrafo – em parágrafos anteriores sempre avesso a afirmar o que não sabia – sucumbira ali à compreensiva tentação de valorizar a sabedoria paterna, usando de inverdade! E se assim não aconteceu, crédito se lhe dê que, melhor ou pior filtrada, tal informação lhe terá chegado por palavras do próprio pai, nalgum momento calmoso da última viagem de Cristobal às Illas e Tierra Firme de Castilla.

Dado em finais do século XIX o mote contestante por Celso Garcia de La Riega, surgiram adiante catalães identificando o minúsculo povoado de Pavia na região de Segarra, e portugueses a vila alentejana de Pavia, sem que em ambos os casos se entenda como se poderia então ter educado um menor de forma a poder vir a “entender os cosmógrafos”, sem a existência local de estudos-gerais, ou mosteiros que lhos ministrassem!

Muito recentemente, Fernando Branco – o português que mais se aproximou de uma identificação credível para um Colón exclusivamente lusitano -, lembrou o rio beirão de Pavia que atravessa o que em tempos foram as terras centrais do ducado de Viseu, título criado para o Infante D. Henrique – o das “descobertas” -, e integrado na coroa com a elevação de D. Manuel a rei de Portugal. Naquela região pôde igualmente identificar um mosteiro mendicante, com fundação de 1410: São Francisco de Orgens. Sendo o almirante devoto franciscano, facilmente se deduz ser esta referência à região do rio Pavia, um dos pontos de maior crédito na tese do engenheiro português.

Esgotando-se em tal Pavia as hipóteses esgrimidas até esta parte, estranha-se que a “mãe” de todos os enunciados não-genovistas, nunca tenha “baixado a terreiro”, reivindicando premissas semelhantes para a educação de um Colón nascido galego! Porque enquanto foi ilustre nativo de Pontevedra sem face conhecida, sempre se supôs instruído entre os beneditinos de São Xoán de Poio; e quando Philippot lhe deu o rosto de Pedro Madruga, se considerou sem mais demandas que a criação se dera entre os dominicanos de Tui, por influência da tutoria de frei Esteban de Soutelo.

Santo Domingo de Tui

E de facto, São Domingos de Tui foi o convento onde este professou e se fez mestre em Sagrada Teologia antes de 1424, ano em que Aureliano Pardo Villar o documenta, ainda ali residindo e ensinando. No entanto, em 1430 já é outro o convento de sua morada, onde é prior, e anos depois, em 1449 por ser eleito Provincial de España, é obrigado a visitações sistemáticas e a uma maior permanência em Castilla, perto da corte. Destituído por bula papal de Fevereiro de 1454, acusado pelo bispo Barrientos no âmbito da reforma da província, só então regressa ao ponto de origem da sua carreira, vivendo em Tui os anos que lhe restaram.

Não se sabendo pois onde se encontrava aquele tutor de Pedro Madruga no início do ano de 1441, impossível se torna atestar o que Alfonso Philippot e Suso Vila garantem: Pedro de Sotomaior “ingressa en el convento de Santo Domingo de Tui, donde cursa sus primeiros estúdios”.

Asseguram por outro lado os fundos documentais da colecção diplomática de São Domingos de Ribadavia, que frei Esteban de Soutelo ali exerceu o cargo de prior em 1430, eleito provavelmente para o triénio 1430-32, uma vez que em 1433 é já frei García de Cusanza o responsável máximo pelo mosteiro.

Prova a listagem da sucessão de priores no convento de Pontevedra afecto à mesma ordem – também publicada por Pardo Villar -, ser corrente que uma vez findo o tempo para que foram eleitos, permanecessem no mesmo convento assumindo novas ou resgatando antigas funções, chegando por vezes a ser reeleitos alguns anos mais tarde. Foi disso caso paradigmático em Pontevedra, frei Pedro de Salnés, prior entre 1432 e 1437, entre 1440 e 1441, em 1445, e num último período entre 1448 e 1451.

Santo Domingo de Ribadavia

Viabilizam estes factos supra mencionados a hipótese de frei Esteban de Soutelo ter continuado a leccionar no convento de Ribadavia, assistindo mesmo ao incêndio que poucos anos mais tarde afectaria parte das instalações. Essa possibilidade autoriza a eventualidade de ainda ali residir quando, por manda testamentária de Fernan Yañez de Soutomaior (Novembro de 1440), tomou a seu cargo a educação para clérigo do jovem Pedro, bastardo que a história conhecerá pela alcunha de “Madruga”.

Acontece que nesses tempos medievos, a vila nascida na margem do rio Avia se conhecia pelo nome latino de Ripa Avie. Cabe ao padre Samuel Eiján tal afirmação, constante nas páginas da sua “Historia de Ribadavia”, e mais atesta que o nome porque actualmente se designa, só foi oficialmente adoptado em sessão camarária de 8 de Dezembro de 1860! Foneticamente soaria então como “Ripavia”, provavelmente com acentuação esdrúxula que lhe adviria pela aglutinação do “a”.

Decerto se não reunirão consensos avaliando semelhanças e igualdades. Nem tampouco se admitirá discutir, se a um velho almirante septuagenário coube pronúncia velada, ou a um jovem grumete ouvido menos atento em terras do Novo Mundo. Porém, a ninguém será indiferente que Ribadavia não tem por que não ser a Pavia onde o Colón galego, no entender do padre Las Casas “estudió los primeiros rudimentos de las letras, mayormente la gramática, y quedó bien experto en la lengua latina”.

 

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Pedro Madruga, Cavaleiro de São João de Rhodes (I) – o tempo de provar nobreza

Numa quinta dos arredores de Braga, o velho morgado Francisco Bernardo de Sá Sottomayor, regalava-se em juntar os netos ao seu redor, contando-lhes histórias do seu viver de Tenente de Cavalaria em luta contra os franceses, ou de legitimista combatendo os constitucionais do futuro Imperador do Brasil. Por vezes, no auge do relato, evocava a coragem e o sangue guerreiro que lhe corria nas veias, herança do seu antepassado Pedro Madruga! E os miúdos sonhavam, e “guerreavam-se” a brincar, em nome daquelas memórias distantes.

Agostinho Barbosa de Sottomayor, meu bisavô, tinha sete anos quando o Morgado se finou. Nunca esqueceu as aventuras do avô e, já velho, a doença levava-o a “águas” ao Balneário de Mondariz, no sul da Galiza. Ali, voltou a ouvir falar de Madruga, personagem lendária que ainda nos princípios do século XX encantava os bosques da região.

Relatou-o ao filho mais novo, António de Sequeira Sottomayor, e aquele tornou-se o genealogista de serviço da família durante as seis décadas que viveu. Nenhum dos filhos se despediu dele, sem também conhecer os “feitos” do Conde de Caminha… e as “barbáries” também, mas essas, “eram frutos dos tempos de antanho”!
Meu pai, Agostinho Neuparth de Sottomayor, levou-me aos 18 anos ao castelo do Madruga. Nunca alguém da família ali tinha voltado nas centúrias mais recentes. Não era então o monumento que hoje podemos apreciar; estava decrépito e ameaçava ruína interior. Pairava no ar, suspenso do restolho e silvados em seu redor… místico, mas ainda e assim mesmo, imponente.

Há um quarto de século que me dedico à história e genealogia dos Sotomayor, e isso diz bem da impressão que me causou aquela visita em Setembro de 1983. As minhas filhas, já jogaram “à apanhada” no castelo… e começam hoje também, a conhecer o avoengo Pedro Madruga!

Certo dia, Alfonso Philippot publicou La Identidad de Cristobal Cólon, afirmando que o Conde de Caminha e o Almirante do Mar Oceano, Colón, eram a mesma pessoa. Ri-me, mas quis saber do que se falava. Afinal… a tese fazia sentido, mas só parcialmente. Tudo o que se relacionava com a época declinante de Pedro Alvares de Soutomaior apontava, de facto, para uma possível transmutação de um no outro, em 1486. O estudo para clérigo também fazia sentido, tal como a frota dos Sotomayor em Pontevedra, e a sua ligação à cabotagem e à rota mercante do Levante. O parentesco de Frei Esteban de Soutelo, seu tutor, parecia um achado surpreendente, e pleno de consistência… contudo, e embora sem certezas, os documentos antigos referiam quase sempre a mãe de Pedro Madruga, como pertencente à casa de Monterrey, ou seja, como uma Zúñiga, e não uma Soutelo-Colón, de Poio.

Se nas suas últimas vontades, ditadas em 1440, o pai de Madruga omitiu o nome da sua amásia, acreditamos que o terá igualmente escamoteado o mais possível, enquanto viveu. Sabê-lo-iam de facto frei Esteban, o escudeiro Alfonso Garcia, os parentes próximos da incógnita, e o próprio Pedro Alvares que quando passou a dono e senhor de Soutomaior, em 1469, fez acrescentar na entrada do senhorio, o escudo de armas de Zúnigas, de sua pretensa mãe, em vez de Távoras, como se esperaria pelo seu casamento, numa clara atitude do que hoje em dia poderia ser considerado, “marketing publicitário”!

Porque mentia Madruga? Perguntei-o a Philippot, cuja resposta não me satisfez. Desse modo, pouco convencido, passei o Colón-Madruga à gaveta das recordações.
Volvido ano e meio, Rodrigo Cota apresentou a crónica burlesca de Francesillo. Reabri a “gaveta”; voltei a querer saber o que se passava: afinal, um achado de princípios do século XVI, não poderia ser ignorado. A leitura que então fiz, cimentou o que já aceitara em Philippot, mas a questão de base mantinha-se em aberto; também a coloquei a Rodrigo Cota. Respondeu-me como é seu apanágio: claro, sucinto e pleno de lógica. Madruga mentia para apresentar uma linhagem de nobreza!

As grandes ideias, são quase sempre “ovos de Colombo”, e desse modo pude reequacionar toda a teoria de Philippot acerca do nascimento de Pedro Alvares de Soutomaior, para mim até então, o grande “calcanhar de Aquiles” de todo o conceito. Como chave-mestra, a Ordem de São João de Jerusalém, também chamada Ordem do Hospital de São João, ou mais geralmente, de Rodes ou de Malta.

Gaspar Massó no seu Pedro Madruga de Soutomayor, caudillo feudal, afirma na página 25, a propósito da confirmação dos títulos de Visconde de Tui e Mariscal de Baiona, que o Conde de Caminha pertencia àquela Ordem militar e religiosa; o investigador português Luiz de Mello Vaz de São Payo, recentemente falecido e até então colaborador activo na revista “Filermo” – publicação oficial da Assembleia dos Cavaleiros Portugueses da Ordem Soberana de Malta – , instituição a que pertencia, não estranhou a afirmação de Massó, acrescentando até que os referidos títulos lhe tinham sido reconhecidos quando Madruga “já era cavaleiro do Hospital de São João de Jerusalém (Rodes)”, como se pode ler na página 77 de Sottomayor Mui Nobre, editado em 1999.

Sabemos também, graças a Suso Vila Pérez e ao seu estudo sobre A cidade de Tui durante a Baixa Idade Media, vencedor do segundo prémio História Medieval de Galiza e Portugal em 2008, que à referida Ordem militar, pertenciam nos séculos XIV-XV as comendas de Toroño e Mourentán, no bispado de Tui, cujas fronteiras provocaram conflitos jurisdicionais entre a Ordem de São João e o Bispado, prontamente resolvidos em 1460, com vantagem para o Cabido tudense, entre Álvaro Paes de Soutomaior – o encomendeiro irmão de Pedro Alvares – e o comendador Frei Sueiro de Nogueirol.

Galindo Romeo já esclarecera antes, em 1923, com Tuy en la baja Edad Media que Toroño designava “toda a terra do bispado de Tui não submetida ao senhorio episcopal”, e pela Nobleza gallega que José Garcia Oro deu à estampa em 1981, sabíamos que Paio Sorredea de Soutomaior fora Meirinho daqueles territórios até ao seu falecimento que Suso Vila situa em 1425, sucedendo-lhe o genro, Garcia Sarmiento, senhor de Sobroso, futuro alvo político-militar de Pedro Madruga.
O historial da Ordem de São João revela que em cada lugar onde se instalavam, os Hospitalários começavam por fundar um hospital, logo seguido por um hospício, e só depois se preocupavam com a sua defesa ou fortificação. Segundo Adrián Arcaz Pozo, tratando da Implantación y desarrollo territorial de la Orden Militar de San Juan de Jerusalén en Galicia (siglos XII-XV), as rotas da peregrinação jacobea foram o cerne aglutinador das comendas e instituições hospitalárias, “facultando ao peregrino hospedagem e assistência nos seus hospitais e albergarias que se encontravam espalhadas, tanto nas desoladas e ásperas montanhas, como dentro das povoações”. No século XV, existiam pelo menos em Tui, o Hospital de São João (dos Gafos), e o Hospital de Pobres e Peregrinos, o que indicia também a presença continuada na região, dos cavaleiros hospitalários.

É precisamente tratando de um aforamento relativo a esta última instituição que a 15 de Fevereiro de 1458 se testemunha, na Edición e estudo escriptolóxico do Tombo do Hospital dos Pobres de Tui que Xulián Maure Rivas publicou, a presença de Pedro Álvares de Soutomaior no claustro da Catedral tudense, ao lado do alcaide da cidade, notários e outras testemunhas. Chama-se-lhe então “discreto varom”, o que prova a sua actuação enquanto representante do Cabido catedralício. Outros documentos apresentados por Suso Vila Pérez em 2008, provam que entre 1460 e 1463, Pedro Álvares era cónego e pertencia ao Cabido tudense, embora segundo aquele investigador, “Pedro não se interessasse muito pelo Cabido”, fazendo-se representar amiúde pelo criado Pêro de Sevilla, de família imigrante da capital andaluza, onde Colón viverá os anos mais relevantes da sua vida.

Extintos os Templários, reza a história que os Hospitalários lhes herdaram senhorios e comendas, um pouco por todo o mundo conhecido. Em Portugal, assim não foi. Dinis, o Rei Lavrador, “tirou da cartola” a Ordem de Cristo, e os cavaleiros de São João perderam poder até ao reinado do “Africano” Afonso V que os relançou e muito beneficiou. Se acaso ainda o não era enquanto serviu o irmão e o Cabido de Tui, por certo Pedro Madruga cavalgou nas hostes das milícias do hospital, ao cair nas graças daquele rei português, de quem teve sempre o maior apoio e amizade.
Qualquer que tenha sido o percurso do futuro Conde de Caminha entre os anos 50 e 60 do século XV, teve de fazer prova da nobreza “a foro de Espanha” dos seus quatro costados, para poder ingressar como cavaleiro secular na referida Ordem, conforme bem esclarece Fernando Gonzalez-Doria no Diccionario Heráldico y Nobiliário, tratando da “Orden Militar de San Juan de Jerusalén”. Os Soutelo dificilmente cumpriam os requisitos, e os Colón eram essencialmente carpinteiros e mareantes.
Um acordo de linhagem pode bem ter sido o ponto de apoio desta mentira tão fundamental. Álvaro Paes, o último herdeiro legítimo e representante da estirpe dos Alvares de Soutomaior, de Toroño, que senhoreavam, ainda e sempre, o solar de onde brotou a casta, conviveu largo tempo na sua infância e adolescência, com seu parente Alfonso, o filho favorito do Mestre de Alcântara D. Gutierre de Sotomayor. Seriam bem próximas as suas idades, e ambos cresceram na Corte, enquanto donzéis de João II de Castela. É o professor universitário de Córdoba Emílio Cabrera Muñoz quem afirma, na página 180 do seu estudo El Condado de Belalcázar (1444-1518), que durante os anos 50, época do seu estratégico enlace com D. Elvira de Zúñiga, Alfonso se passou a apelidar “Alvares” de Sotomayor, facto que o académico atribuía a uma homenagem de Alfonso ao sogro, D. Álvaro de Zúñiga, Conde de Plasencia.
Outra leitura dos factos, permite entrever uma procura de paridade na legitimidade dos Sotomayor da Extremadura, face aos seus homónimos da Galiza. Como moeda de troca, reforçavam-se os Soutomaior de Tui, conseguindo para o seu bastardo Pedro Álvares, a entrada na Ordem de São João, validada num parentesco próximo, tacitamente aceite entre ambas as linhagens, mas sempre envolto em confusa neblina, como o próprio Vasco de Aponte nos transmite na sua Relación dalgunhas casas e linãxes do reino de Galiza, na página 120 da edição de 2008 de Clodio González Pérez, relatando o que sobre esse assunto se conhecia na época, da seguinte maneira: “(…) Pedro Alvarez de Soutomaior era bastardo natural que o tivera seu pai Fernán Eáns dunha irmã, curmá ou sobriña da condesa de Ribadavia, a que morreu a lanzadas”.
José Garcia Oro na obra supra-citada, revela, por acréscimo, que entre os Soutomaior e os Zúñiga existia uma relação de parentesco muito próximo, documentando nas páginas 95 e 222, respectivamente, que Álvaro de Soutomaior se dirigia a D. Pedro e a D. Juan de Zúñiga, de Monterrey, com o tratamento de “mi Señor tio”. Por maioria de razão, deve concluir-se que da mesma forma consideraria a condessa de Santa Marta (Vasco de Aponte chama-lhe erradamente “de Ribadavia”), D. Teresa, irmã destes. Esta situação prova, por si só, que a Pedro Madruga, irmão de Álvaro, bastava ser filho de Fernánd Yáñez de Soutomayor, para também ser visto na sua época como sobrinho da Condessa de Santa Marta. Não precisava de ser filho bastardo de uma qualquer “Zúñiga”, não documentada nas genealogias, como muito bem anota Salazar y Castro à margem do testamento do primogénito do Madruga, também chamado Álvaro, documento datado de 1491, em que o testador menciona o sepulcro de sua suposta avó, na igreja do Convento de São Domingos de Tui: “(…) de dicho Monesterio de S. Domingo onde está enterrada la dicha D.a Constanza de Zúñiga mi abuela”. Equivocava-se Álvaro, ou enganara-o seu pai, bem como aos outros seus irmãos. No mosteiro em que Pedro Madruga se criou e que tão bem conhecia, está de facto sepultada uma dama, ao lado da arca tumular de um Soutomaior: só que se chamava Inês Álvares e foi mãe do segundo João Fernandes de Soutomaior, Bispo de Tui, conforme opinião de Suso Vila, no livro já citado, páginas 351 a 353.
A propósito ainda da suposta mãe do bastardo Pedro Álvares de Soutomaior, cabe nestas linhas a opinião de Rodrigo Cota, baseado na seguinte passagem do testamento de Fernánd Yáñez: “Yten mando q den ala madre del dicho Pedro mi fizo bastardo por el cargo q della tengo docientos frolines de oro y dela dicha ley y cuño de Aragon.” Baseado na equivalência do florin de ouro em relação ao maravedi, moedas correntes no tempo de Enrique IV, o autor de Colón, Pontevedra, Caminha, estima o valor legado, em 14 000 maravedis, magra quantia para um Soutomaior doar a uma Zúñiga, à laia de dote; “más bien parece la cantidad que se entrega como ayuda a una mujer sin linaje alguno ni gran fortuna”. Tomemos como ponto de comparação que o dote de uma nobre casadoura por essas datas, valia cerca de cinquenta vezes mais, como se deduz do contrato de casamento de Mecia Sarmiento com seu primo Francisco, filho dos Condes de Santa Marta.

Estreita era a relação entre os dois ramos dos Zúñigas: o de Monterrey e o de Plasencia. Após a referida morte prematura da condessa viúva de Santa Marta, em 1470, ficou órfão o pequeno Bernardino, cuja tutela, segundo Garcia Oro (página 105) logo foi atribuída ao Conde de Plasencia D. Álvaro de Zúñiga, sogro, como acima se viu, de Alfonso “Alvares” de Sotomayor. Informa Emílio Cabrera Muñoz no já mencionado estudo sobre o Condado de Belalcázar, páginas 182 a 186, que este Alfonso, por sua vez, também morreu cedo, em 1464, cabendo a tutela dos seus filhos à mulher, Elvira, e ao irmão desta, também chamado Álvaro de Zúñiga, Prior da Ordem de São João do Hospital em Castela.

Admita-se pois, à guisa de conclusão, que a este Álvaro poderá ter ficado a dever o então ainda eclesiástico Pedro Álvares de Soutomaior, a sua ascensão a cavaleiro da Ordem de São João do Hospital, após o necessário processo de admissão, devidamente sancionado pelos testemunhos dos Zúñiga de Monterrey e Plasencia, jurando um nebuloso parentesco capaz de garantir ao futuro Conde de Caminha, nobreza dos quatro costados.