O «mar português» de Pedro Colón (II) – Parentes

Vila Nova de Cerveira (1509), por Duarte d’Armas

 

 

 

 

 

 

 

Retomemos o velho texto de Vasco da Ponte. Uma vez casado em terras lusas, o ex-cónego de Tui, Pedro de Soutomaior, recebeu o apoio de “(…) parentes, cunhados e amigos”. Três gradações de parentesco, com ou sem afinidades sanguíneas, capazes de mobilizar vontades e estabelecer semelhantes percursos de vida. Do conhecimento e compreensão do ambiente que o rodeou em Portugal, advém a possibilidade de esboçar um perfil condutor de Pedro Álvares, enquanto vassalo daquela corte.

Respeite-se a ordem do cronista. Em 1468, que parentes tinha Pedro em Portugal?

À cabeça, Leonel de Lima, senhor de vastos senhorios em Entre-Douro-e-Minho, que controlava desde o paço de Giela, em terras de Valdevez. Reza a tradição que este segundo primo dos Soutomaior, era “grande homem de corpo e de pessoa”, capaz de dividir opiniões acerca da sua lealdade e carácter.

Classifica-o Humberto Baquero Moreno, historiador português, tanto como oportunista político na corte, como déspota prepotente e pouco escrupuloso no âmbito regional. Sintomaticamente, embora fosse alcaide do castelo de Ponte de Lima, era, contudo, figura pouco grata, até indesejada entre os habitantes e conselho da vila[1].

Por oposição, a cidade do Porto tinha-lhe apreço, conforme opinião do catedrático Luís Miguel Duarte, que se justifica por extractos dos livros das Vereações, não resistindo à comparação de atitudes dos regedores do burgo – negativa no que respeita ao grosso da fidalguia – , contemplando positivamente algumas excepções de bom acolhimento, como acontecia com Leonel de Lima. As razões das “boas graças” em que o tinha a cidade, encontra-as o historiador no interesse das rotas comerciais de então, onde a frota de navios do fidalgo de Giela, participava em permanência e em qualidade, o que o tornava, inclusive, habilitado a sugerir ao rei, um dos seus homens para alcaide dos estaleiros locais da coroa. Garantem até as fontes, a presença regular dos barcos de Leonel de Lima, na carreira de Ceuta, quer em acções de cunho militar, quer em empresas mercantis[2].

Estima-se que o capitão Fernan Yañez de Soutomaior, bem conhecesse este seu primo – que rondaria a sua idade – , até porque Francisco de Vasconcelos o documenta como herdeiro, de parte de um imóvel em Ponte de Lima[3], o que pressupõe algumas deslocações aquela vila minhota. Bem menos improvável será o contacto de Leonel de Lima com o primo Álvaro, sucessor na casa de Soutomaior no dealbar de 1441, e que, como sabemos, se tornou figura incontornável no território tudense nas décadas de cinquenta e sessenta. Se bem que ainda longe de se vir a tornar visconde da vizinha Vila Nova de Cerveira – o que aconteceu no rescaldo da batalha de Toro – , Leonel de Lima era figura habitual naquelas paragens do rio Minho, enquanto guarda-mor da alfândega fronteira de Valença. Nesse contexto, apoiando o irmão e pertencendo ao cabido de Tui, com toda a probabilidade Pedro de Soutomaior tratava com aquele seu primo português.

Deve inclusivamente levantar-se com segurança, a hipótese de o futuro visconde de Cerveira ter sido a ponte que o ligou aos Távora, uma vez que os factos históricos e documentais, levantados por Baquero Moreno[4] e Carlos Guilherme Riley[5], claramente deduzem uma forte aliança entre o chefe dos Limas, e o cunhado, Álvaro Pires de Távora. Regulando idades semelhantes, casados nos anos trinta com duas irmãs que na corte representavam a casa de Pombeiro da Beira, naturalmente tomaram partidos semelhantes, tanto no apoio à regente-viúva Leonor de Aragão – após a morte do rei D. Duarte – , como posteriormente, na obediência ao infante D. Pedro, a quem acabaram por virar costas, em tempos diferentes, é certo, mas antes do confronto decisivo de Alfarrobeira.

Vista sobre Lisboa, desde a Torre da Caparica – Foto de Gastão de Brito e Silva

Definitivamente do lado de Afonso V, caberia ao Lima o prémio já referido em Valença, enquanto o Távora, cuja fidelidade se adiantara, receberia nesse mesmo ano de 1449, o grosso dos bens de outro dos cunhados, Álvaro Vaz de Almada, homem de mão que fora do infante-regente, e por quem se finara na dita batalha. Deste modo singular, se tornou Álvaro Pires de Távora senhor de juro e herdade das terras da Torre da Caparica, onde teria a seu cargo a única bateria de defesa da barra do Tejo, criada por ordem do primeiro rei de Aviz.

No volumoso estudo que dedicou ao significado histórico de Alfarrobeira, Baquero Moreno acrescenta que logo depois, Álvaro de Távora, com autorização real e sem perca de honra ou privilégios, deixou a região transmontana, passando à condição de vizinho de Lisboa, onde melhor poderia exercer as tarefas que lhe competiam na corte, enquanto membro do conselho do rei. Indiciam as fontes, em simultâneo, alguma actividade sua e de Martim de Távora, o reposteiro-mor seu irmão, em questões de serviço e representação norte africanas[6].

Outro dos parentes de relevância com que Pedro Álvares podia contar no reino português, era João Gonçalves, seu outro irmão, que os genealogistas entendem ser também filho ilegítimo do capitão Fernan Yañez de Soutomaior, e alguns lhe dão inclusive a mesma mãe: a pouco referenciada Constança de Zúñiga, “(…) irmã, curmá ou sobriña da condesa de Ribadavia”[7], como a pretendeu identificar Vasco da Ponte ou, a que “(…) fue hija de don Diego Lopez de Çuñiga (…) e de una señora de la casa de Avellanedo la qual [Fernan Yañez] traxo a Galizia y alli faleçio”[8], conforme redige Diego de Soutomaior, alargando a indefinição acerca da origem da sua avó, desde Monterrey ao condado de Miranda del Castañar!

À razão esgrimida por Alfonso Philippot, fundamentada nas genealogias dos Colón de Poio, assenta sem mácula a existência deste outro bastardo, mencionado pela primeira vez numa carta de armas de 1561, por cujo nome e apelidos se não estranharia que tivesse nascido do ventre de Constança Gonçalves, irmã de Blanca e Juan Gonçalves, filhos de Alfonso de Soutelo e Blanca de Colón[9]. Trata-se, contudo, de um campo de investigação com outras hipóteses que claramente excede os motivos de agora.

Eventualmente nascido uma meia dúzia de anos antes de Pedro e talvez contemporâneo do irmão legítimo Álvaro, atingiu João Gonçalves uma idade consciente em princípios dos anos trinta, o que poderá ter viabilizado a sua entrada como pajem na casa ducal de Coimbra, de que era titular o já referido D. Pedro, futuro infante-regente de Portugal. Graças ao sacerdote e catedrático Pascual Galindo Romeo, sabe-se que Fernan Yañez e o Duque de Coimbra se conheciam, e que este ofertara ao Soutomaior um dos seus mantos de seda, bordado a prata, com que aquele fazia cobrir na sé tudense, o altar do “Corpo Santo” de Pedro González Telmo, padroeiro de Tui e dos homens do mar[10].

Nesse âmbito se poderá entender, que João Gonçalves de Soutomaior fosse também conhecido como “o de Miranda”, talvez posto a cargo do Duque de Coimbra nessa vila transmontana no final de Agosto de 1432, quando ocorreram as negociações para a entrega da vizinha fortaleza de Alba de Liste, entre o derrotado infante Enrique de Aragão, e o representante do rei de Castela, que foi então Fernan Yañez de Soutomaior.

Buarcos em 1625 – gravura de Daniel Meisner

Ao abrigo da casa de Coimbra, o irmão de Pedro Álvares pôde adquirir algum território em Buarcos, porto da foz do rio Mondego, que a Corografia Portuguesa do Padre António Carvalho da Costa garantia ser povoação de galegos, escolhida por ter “(…) costa de boas pescarias”[11]. Desde a sua quintã de Buarcos, poderá ter exportado sal e pescado nas rotas comerciais da época, e transaccionado outros bens ao longo do rio, que atravessava em longitude, todo o território de D. Pedro.

Rondaria os 25 anos quando se deu o já mencionado confronto de Alfarrobeira, que resultaria na morte do regente, e consequente desmembramento de toda a sua opulenta casa. Ali se bateram em vão as gentes de Buarcos, sendo de crer que com elas esteve o Soutomaior. Depois, por enredos que nos escapam, mas abrangido pelo perdão real de 1450, abraçou o lado vencedor, entrando como escudeiro na casa de Bragança, ao serviço do velho duque D. Afonso, facto registado nas diversas genealogias portuguesas.

Casaria em Barcelos com uma das netas do “Sá das galés” – de memória já então celebrizada pelas acções que desenvolvera no Tejo, durante o cerco de Lisboa, em 1384. Por dote, Filipa de Sá receberia do pai, a quinta do Crescente, em São Salvador do Campo, de Barcelos. A leitura das fontes genealógicas permite, no entanto, deduzir, que o casal residiu em Coimbra, onde João Gonçalves de Soutomaior melhor poderia administrar os tratos comerciais e as terras de Buarcos. No início da década de sessenta, tornar-se-á chegado à figura do bispo D. João Galvão, que em compensação pelo concubinato que manteve com Guiomar – uma das suas filhas – , dotou o primogénito João Rodrigues de Sá, seu acostado, com o prazo de Curval, em terras de Azeméis, a que o mesmo juntou o dote da sua primeira mulher, na Anadia.

Sublinhe-se que aquele prelado de Coimbra, o primeiro bispo-conde de Arganil pelos serviços prestados em Arzila e Tânger, viria a caber no estreito rol de amigos fieis ao “Príncipe Perfeito”, sendo irmão do futuro secretário régio e cronista, Duarte Galvão, e ambos filhos de um dos homens da maior confiança de Afonso V: o escrivão Rui Galvão.

Durante todo o tempo que Pedro Álvares foi vassalo português, a cidade do Porto esteve nas mãos de um dos primos co-irmãos desta cunhada: o alcaide-mor João Rodrigues de Sá, dono de vastos senhorios em toda a foz do Douro, claro indício de se dedicar directa, ou indirectamente, ao trato de mar, ideia reforçada pela documentação, que em 1458 lhe dá o comando da nau armada pela cidade, na campanha de Alcacer-Ceguer.

Acumulava essas funções com as de fronteiro-mor de Entre-Douro-e-Minho, e por isso, embora residisse no seu paço da rua Chã do Porto, mantinha casas em povoações fronteiriças, como a de Valença onde – segundo Garcia Oro, que se informa numa cédula de Simancas – , na sua casa se receberam os 800 marcos de prata que garantiram a liberdade do bispo de Tui, Diego de Muros, preso por homens do Soutomaior[12]. Por certo essa confiança significava uma estreita relação entre ambos, sendo uma das pistas que justificam a presença no julgado de Refoios do ainda conde de Caminha, semanas antes de enfrentar os Reis Católicos na audiência de Janeiro de 1486, em Alcalá de Henares[13].

Também o ex-médico de Henrique “o Navegador”, se apresenta como parente de Pedro Álvares, exercendo na corte de Afonso V o influente cargo de cirurgião-mor, que lhe valia então privilégios comparáveis aos de um desembargador ou chanceler-mor. A única filha deste Mestre Fernando, legitimada em 1455, foi Maria Fernandes de Soutomaior, casada com o escrivão da Fazenda real, Pedro de Alcáçova.

Deve evidenciar-se a importância deste último, tanto nas campanhas de África, como também no processo das descobertas marítimas. Demonstram as fontes que estivera na conquista de Alcacer-Ceguer em 1458, onde servira com distinção. Regressaria às costas de África sempre que D. Afonso V ali combateu, contribuindo com «gastos de nauios armas e homees». Graças ao seu labor de espionagem, as praças de Tânger e Arzila acabaram tomadas pelos portugueses, em 1471, baseando-se a estratégia de conquista, nas informações rigorosas, e ardilosas sugestões no proceder militar, que soube transmitir.

Pêro da Covilhã, que demandou em finais do século XV as míticas terras do Prestes João das Índias a mando de D. João II, revela na crónica dessa jornada, recordada pelo Conde de Ficalho em finais do século XIX, que era na casa dos Soutomaior da Alcáçova, à cerca velha de Lisboa, que se reunia a junta de cosmógrafos e matemáticos, conselheiros reais em tudo o que se relacionava com o projecto de expansão marítima português[14]. A mesma junta, recorde-se, que discutira nesse tempo, o projecto de Colón.

E já que se fala de cosmógrafos, virá ao caso referir Nicolau Coelho, bravo nauta que se destacou nesse saber científico, e por isso comandou um dos barcos da armada de Vasco da Gama, no caminho da Índia. Oriundo da casa de Felgueiras, passou tecnicamente por cunhado de Pedro de Soutomaior, a partir do momento em que este se envolveu com sua meia-irmã Constança, a tirou do convento em que se resguardava, e lhe deu estado na terra da Feira, para que ali vivesse e criasse o filho de ambos: D. Nuno de Soutomaior.

Razões que aqui não cabem, podem indiciar que este Nuno, seja irmão daquele a quem a “História dos Arcebispos de Braga” de D. Rodrigo da Cunha[15] chama João, e faz casado na família do Cardeal de Alpedrinha, D. Jorge da Costa, o homem que através da sua influência no interior da Santa Sé, ali defendeu a política externa de Portugal, nomeadamente nas negociações de Tordesilhas. Este facto é significativo, e coloca Pedro Álvares de Soutomaior como parente muito próximo dos Albuquerques de Angeja e Penamacor, uma vez que Pedro de Albuquerque – o mesmo que acabou degolado por conspirador, a mando de D. João II – , estava casado com uma das irmãs do Cardeal.

A ser o Soutomaior homem de navios, como as evidências vão demonstrando, justifica-se que um seu filho, ainda que ilegítimo, tivesse aceitação entre o exigente prelado, cujos interesses no trato de mar, datariam, pelo menos desde 1464, quando fora designado para arcebispo de Lisboa, ou 1475, quando assumira a comenda da abadia de Alcobaça, e do porto de Alfeizerão que lhe estava afecto. Como vimos, já antes se aliara aos referidos Albuquerques – Pedro e Henrique – , referenciados como corsários no mediterrâneo e atlântico, em documentação de 1460[16] e 1473[17], levantada respectivamente por Adão da Fonseca e Luís Ramalhosa Guerreiro. Pedro de Albuquerque, seria inclusivamente nomeado, talvez por imposição de D. Jorge da Costa, Almirante de Portugal, meses antes de ser morto.


[1] Baquero Moreno, H. (1989). Um fidalgo minhoto de ascendência galega: Leonel de Lima. Congresso Internacional Bartolomeu Dias e a sua época, Actas. V, pp. 259-274. Porto: Universidade do Porto; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.

[2] Duarte, L. M. (1996). Leonel de Lima: O Bando e o Barco. Revista Portuguesa de História, XXXI-Vol. I (Homenagem ao Doutor Salvador Dias Arnaut), pp. 371-392.

[3] Vasconcelos, F. (1984, 1985). Paço de Sequeiros: uma casa que completa 600 anos. Arquivo de Ponte de Lima, IV, V, pp. 71-95, 57-67.

[4] Baquero Moreno, H. (1989)

[5] Riley, C. G. (1997). Informação, espaço e poder: um relatório enviado ao regente D. Pedro (circa 1441). Arquipélago-História, 2ª Série, Vol. 2, pp. 387-415.

[6] Baquero Moreno, H. (1980). A Batalha de Alfarrobeira. Antecedentes e significado histórico (Vol. II). Coimbra, Portugal: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, pp. 982.

[7] Ponte, V. (2008), pp. 120.

[8] Archivo Histórico Nacional. Relación.

[9] Philippot Abeledo, A. (1994), pp. 240-243, 651-652.

[10] Galindo Romeo, P. (1923). Tuy en la baja edad media, siglos XII-XV. Madrid, España: Instituto “Enrique Florez”, Doc. XXIX, VII, inventário do tesouro, 1463.

[11] Costa, A. C. (1706-1712). Corografia portugueza e descripçam topográfica do famoso reyno de Portugal… (Vol. II). (V. C. Deslandes, Ed.) Lisboa, Portugal, pp. 66.

[12] Garcia Oro, J. (1981), pp. 251.

[13] Cota González, R. (2008), pp. 95-96.

[14] Ficalho, C. d. (2008). Viagens de Pêro da Covilhã (reeimpressão ed.). Porto, Portugal: Fronteira do Caos Editores.

[15] Cunha, R. d. (1634). Primeira e segunda parte, da Historia ecclesiastica dos arcebispos de Braga: e dos santos, e varoes illustres, que florecerão neste arcebispado. (M. Cardozo, Ed.) Braga, Portugal.

[16] Adão da Fonseca, L. (1978). Navegación y corso en el Mediterraneo occidental: los portugueses a mediados del siglo XV. Pamplona: EUNSA.

[17] Guerreiro, L. R. (1996). O grande livro da pirataria e do corso. Lisboa, Portugal: Círculo de Leitores.

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