No rasto matricial do conde D. Pedro de Caminha (II) – Dona Constanza de Zúñiga. Uma figura inconsistente, entre Monterrei e Miranda del Castañar

Sepulcro de Inés Alvares (Santo Domingo de Tui)
Sepulcro de Inés Alvares (Santo Domingo de Tui)

Desconhece-se em absoluto, a localização do sepulcro em que estaria dormindo o sono eterno, a dita D. Constanza de Zúñiga, conforme asseverava o neto D. Álvaro. Existe de facto em Santo Domingo de Tui, uma arca tumular de certa dama, jazendo ao lado de um Soutomaior; deverá no entanto tratar-se de Inês Álvares, mãe do bispo D. Juan Fernandes de Soutomaior, conforme levanta Marta Cendon Fernandez[1] e sustenta Suso Vila[2]. A própria redacção testamental de 1491 é suspeita. Além de ser demasiado sucinta para o objectivo, limita-se a dois tópicos fundamentais: a indicação do local para o futuro enterramento do testador e dos ascendentes mais próximos (avô, tia e pai), concluindo com a detalhada informação referente a D. Constanza de Zúñiga; e a nomeação da mulher, D. Inés Enríquez de Monroy, como administradora da sua fazenda e tutora do previsível herdeiro, ainda por nascer. Excluindo uma quantia que manda dar para ajuda da guerra de Granada – para onde partiria em breve -, nada mais! Como ambos (nobreza dos quatro costados, e a posse efectiva dos bens pela viúva do titular da casa) foram temas judicialmente vitais para a linhagem, entre as décadas finais do século XV e as primeiras do seguinte, é pertinente questionar a credibilidade do documento. Convém recordar que D. Pedro de Soutomaior, o filho desta D. Inés, para além do crime de matricídio porque foi condenado em 1518, ficou conhecido na história como um dos maiores falsários do seu tempo[3]! E que nos pleitos pela casa de Soutomaior ocorridos entre os séculos XVI e XVIII, se deram como falsos vários documentos, entre os quais um testamento de D. Maior de Soutomaior, datado de 1482[4], originalmente apresentado num litígio que opôs D. Inés e seu filho, aos restantes herdeiros encabeçados por D. Diego de Soutomaior[5].

Estranha-se de igual forma que, enquanto legítimo titular e cabeça de linhagem, D. Álvaro pretenda sepultar-se em São Domingos de Tui, apartado dos antecessores, aos quais destina uma posteridade bem mais relevante, na capela do bispo Soutomaior, no interior da sé-catedral do bispado. E ainda causa maior admiração, pretender sepultá-los a todos – se o bispo não autorizasse a manda anterior -, junto da sua ilegítima avó. Além do mais, tanto Fernan Yañez como a irmã D. Maior há muito que jaziam no panteão da família, em São Domingos de Pontevedra! Exactamente na mesma capela na qual, ainda hoje, se pode ver a laje sepulcral onde o próprio D. Álvaro acabou sepultado, poucos anos mais tarde, sem que se respeitassem aquelas suas vontades!

Outro exemplo duvidoso data de 1510, aquando da recolha de testemunhos para a já referida admissão à Ordem de Alcântara de D. Diego de Soutomaior – processo em que era condição necessária a apresentação de nobreza dos quatro costados. Uma das testemunhas arroladas detalhou inclusive que conhecera “(…) Doña Constancia de Çuñiga, que hera hermana de Juan de Çuñiga el bermejo de Valladolid (…)”, nos oito anos que servira como pajem na alcáçova de Soutomaior![6]

O mesmo D. Diego, cerca de duas décadas mais tarde – já comendador de Almorchón e Cabeza del Buey naquela ordem -, referenciava a sua presumida avó, como “(…) hija de don Diego Lopez de Çuñiga (…) e de una señora de la casa de Avellanedo la qual [Fernan Yañez] traxo a Galizia y alli faleçio”, logo após ter distorcido os factos para encobrir a bastardia paterna, escrevendo que Álvaro e Fernan Yañez de Soutomaior eram irmãos, que este não tivera descendência legítima, e que seu pai era filho do primeiro![7]

Simultaneamente o cronista Vasco da Ponte, nos anos 30 do século XVI, documentava na “Relación dalgunhas casas e liñaxes do Reino de Galiza”, como então era vista a origem de Pedro Álvares de Soutomaior: “(…) bastardo natural que o tivera seu pai Fernán Eáns dunha irmã, curmá ou sobriña (…)” de D. Teresa de Zúñiga, condessa de Santa Marta. Com um parágrafo de permeio, logo identifica a dita condessa, como tia do Soutomaior.[8] Faço notar, como o cronista associa indiscriminadamente, as noções de “filho bastardo” e “filho natural” que, já se viu, encerrarem diferentes conceitos legais e sociais.

Baseados nestas fontes primárias, procuraram os investigadores – em vão -, encontrar a referida D. Constanza de Zúñiga, que deveria ser filha de um D. Diego López de Zúñiga e de uma senhora Avellaneda, ter um irmão D. Juan de Zúñiga, referência em Valladolid, e ser irmã, co-irmã ou sobrinha dos Zúñiga de Monterrei. Nenhuma genealogia conseguiu, com os dados disponíveis até hoje, cumprir todas estas premissas.

Castelo de Monterrei (Ourense)
Castelo de Monterrei (Ourense)

Uma hipótese próxima do ideal, pode situá-la como filha natural de D. Diego López de Zúñiga “o moço”, havida numa senhora da casa de Avellaneda e, como tal, irmã natural de D. Juan, visconde de Monterrei, e das condessas de Santa Marta e Ribadeo. A ser verdade, Pedro Madruga seria, de facto, sobrinho destes últimos, sustentando-se assim, a afirmação de Vasco da Ponte. A história parece apoiar esta probabilidade. Sabe-se pela “Crónica del Halconero de Juan II”, Pedro Carrillo de Huete, que em 1432 Fernan Yañez de Soutomaior participou no cerco e tomada do castelo de Alba de Aliste, no âmbito das lutas contra os infantes de Aragón[9]. Pelo manuscrito de Baltasar de Zúñiga y Fonseca, um “Sumário da descendência dos Condes de Monterrey” escrito em começos do século XVII, igualmente se conhece que foi D. Diego López de Zúñiga “o moço”, residente em Zamora, quem comandou a referida acção militar por incumbência do rei Juan II de Castilla[10]. Além disso, este Zúñiga de Monterrei esteve viúvo de D. Elvira de Biedma algum tempo antes de 1418, ano em que casou pela segunda vez com D. Constanza Barba, cabendo a possibilidade de ter uma filha natural nascida nesse hiato de viuvez. Desse modo, os factos históricos colocam Fernan Yañez em Zamora, com acesso privilegiado à casa dos Zúñiga, num ano em que uma suposta filha natural de D. Diego poderia ter entre 16 e 18 anos, viabilizando o nascimento de Pedro Madruga entre os anos de 1432 e 1433.

Contudo nenhuma fonte primária, ou as genealogias posteriores, confirmam a existência dessa filha natural do primeiro Zúñiga que senhoreou Monterrei. Além disso, sabe-se através de documentação relevada por José García Oro no texto de “La Nobleza Gallega en la Baja Edad Media”, que Álvaro de Soutomaior se dirigia a D. Juan de Zúñiga y Biedma, de Monterrei, com o tratamento de “mi Señor tio”[11]. Radicava o parentesco, curiosamente, entre duas Elviras da casa de Biedma: a avó do Soutomaior[12], e a mãe do Zúñiga. De forma semelhante haveria Álvaro de tratar com D. Teresa, irmã daquele, resultando que a Pedro Madruga – irmão de Álvaro -, bastava ser filho de Fernan Yañez de Soutomaior, para também ser visto na sua época como sobrinho da condessa de Santa Marta. Insinua Salazar y Castro, que por essa ofensa (concubinato com uma filha já de si natural?), os de Monterrei terão morto o Soutomaior[13], observando por outro lado e noutra parte, à margem da cópia que fez ao testamento já mencionado de D. Álvaro de Soutomaior, que “(…) en la linea de M.te Rey, no ai tal Dª Constanza: a lo menos lexitima”. A estreita aliança que ambas as linhagens mantiveram nos anos subsequentes, não sustenta porém, esta “acusação” do genealogista. No mesmo documento em que afirma que “(…) por estos amores le mataron” Salazar y Castro dá por avó de Pedro Madruga a segunda mulher do senhor de Monterrei, D. Constanza Barba, não se escusando a reservas, ao admitir “(…) esta creo que fue su madre, que sé no fue bastarda.”

Fragiliza toda esta hipótese, a já referida frase do comendador D. Diego de Soutomaior, coincidindo exactamente nos mesmos nomes (Diego López de Zúñiga + senhora Avellaneda = Constanza de Zúñiga) que se sabe pertencerem a uma geração posterior dos condes de Santa Marta. De facto, a terceira condessa de Santa Marta foi D. Constanza de Zúñiga y Avellaneda, filha dos primeiros condes de Miranda del Castañar, D. Diego López de Zúñiga e D. Aldonza de Avellaneda, primos co-irmãos da dita D. Teresa de Zúñiga, a primeira condessa de Santa Marta. Embora pareça confusa, esta genealogia, à luz dos parentescos medievais, também identifica Constanza como sobrinha daquela condessa, filha de primo co-irmão. Não se verifica, no entanto, a existência de um D. Juan de Zúñiga nesta geração da casa de Miranda del Castañar. Além do mais a cronologia estabelece para esta Constanza, uma data de nascimento limite nos anos 40 do século XV, enquanto a mãe do futuro conde de Caminha não poderia ter vindo ao mundo depois de 1420.

Castelo de Miranda del Castañar (Salamanca)
Castelo de Miranda del Castañar (Salamanca)

O que acima fica dito, parece fazer oscilar a presumível origem de Constanza de Zúñiga, entre a casa orensana de Monterrei e a salmantina de Miranda del Castañar, aparecendo em fundo, o condado de Santa Marta de Ortigueira como elemento estruturante de um enredo que decorre entre meados do século XV e o primeiro terço do seguinte, envolvendo as linhagens de Soutomaior, Zúñiga, Ulloa e Sarmiento.

Em 1468, quando Álvaro de Soutomaior decide perfilhar o “bastardo” Pedro, altera a linha de sucessão que seu pai, Fernan Yañez, estabelecera no testamento de 1440: se Álvaro não tivesse filhos, os senhorios passariam à tia, Maior de Soutomaior, e desta, pela mesma razão, passariam a Lopo Sanches de Ulloa, ou aos da sua geração. Por isso se realizou o seu casamento com a filha deste, Maria de Ulloa. Só que o matrimónio não teve fruto e Álvaro morreu, sem deixar geração, mas perfilhando o irmão para que pudesse herdar, o que veio a acontecer, por expressa autorização do rei Enrique IV, em Agosto de 1468[14]. Mais tarde, em 1477, D. Maior de Soutomaior confirmá-lo-ia em testamento, como seu herdeiro universal[15], desfazendo qualquer dúvida, sobre a legitimidade de D. Pedro Álvares, já conde de Caminha, à herança da casa de Soutomaior.

Entretanto, protestava o cunhado D. Sancho de Ulloa, filho de Lopo, considerando-se o legítimo candidato a herdeiro[16], conforme definira o testamento de 1440. Prevenindo-se quanto às suas origens maternas, Pedro Madruga poderá ter buscado a legitimidade entre a incontestável nobreza dos Zúñiga, parentes e aliados – tanto na Galiza como na Extremadura[17] -, e a quem o seu irmão Álvaro tinha recentemente apoiado, na invasão predadora feita por D. Juan ao território dos Ulloa, interrompendo deste modo, a aliança familiar que os Soutomaior mantinham há duas gerações com os desta linhagem. Afirma-o Vasco da Ponte, contando que quando Lope Sanches de Ulloa “(…) tiña casada a súa filla com Xoán Zúñiga, que cando el lla quitou e a casou com Diego de Lemos, o tal Xoán Zúñiga axuntou consigo grandes xentes do vizconde [de Fisterra, D. Lope Sanches de Moscoso, aliado dos Soutomaior] e do conde de Ribadavia, e a casa de Soutomaior e correulle toda a súa terra e queimoulle a casa de Vilarmaior (…)”[18].

Prova igualmente a firme aliança entre as casas de Soutomaior e Monterrei, o facto de não haver notícia desta última ter integrado as expedições militares dos Pimentel e Sarmiento contra a cidade de Tui – na posse dos Soutomaior -, ou ter subscrito o acordo de Mucientes, em que os condes de Benavente e Santa Marta juraram“(…) non fazer trato, pas nin avenençia com Álvaro Paes de Soutomaior (…) antes le faremos todo mal e dagno en su persona e fortalesas e bienes e vassalos que pudiéremos (…)”[19]. Sendo certo, que D. Juan de Zúñiga y Biedma viveu largos anos em casa de sua irmã D. Teresa, condessa de Santa Marta, desempenhando cargos da confiança do conde seu cunhado e Adiantado-Maior da Galiza, entre os quais o de Meirinho-Maior das suas hostes[20], e chegando a ser escolhido por mediador, em certa disputa de monta entre Álvaro de Soutomaior e o próprio adiantado D. Diego Pérez Sarmiento, com vantagem para o primeiro ao garantir a posse da vila de Salvaterra[21]. Porém ficaram os termos por cumprir até à morte do Sarmiento, decidindo em seguida a Zúñiga, entregar Salvaterra aos Soutomaior! Igualmente se evidencia tal aliança, no pedido de ajuda a Pedro Álvares de Soutomaior, feito pela dita viúva, quando desesperava na luta pela integridade do seu senhorio contra o rebelado povo de Ribadavia. Morreu todavia D. Teresa de Zúñiga y Biedma violentamente, antes que ali chegasse aquele sobrinho, o qual em retaliação a vingou de forma exemplar, fazendo “(…) matar a uns e a outros cortar os pés, e a outros prender (…)[22].

Quatro anos depois, em 1474, desaparece o seu irmão D. Juan de Zúñiga y Biedma, visconde de Monterrei. Casado com a única filha deste, Sancho de Ulloa recebe dos Reis Católicos, o título de Conde de Monterrei. Aliado do arcebispo Fonseca, será desde então, um dos maiores inimigos do conde de Caminha. Entre os Ulloa e os Zúñiga, naturalmente a casa de Soutomaior estará desde então ao lado de Pedro de Zúñiga y Barba, meio-irmão dos já falecidos visconde de Monterrei e condessa de Santa Marta, nomeadamente em 1486, quando este decide reclamar na justiça, a D. Sancho de Ulloa, o morgadio das terras de Monterrei, baseado numa antiga sentença de 1454. O Zúñiga ganha o pleito judicial em 1489[23]. Sua mulher, D. Juana de Arellano, era prima co-irmã de D. Aldonza de Avellaneda, a já referida condessa de Miranda del Castañar, mãe de Constanza de Zúñiga – a presumida mãe do conde de Caminha D. Pedro de Soutomaior, atendendo às palavras do filho deste, D. Diego, comendador da Ordem de Alcántara.

Nesse meio tempo, depois da morte da primeira condessa D. Teresa de Zúñiga y Biedma (1470), disputou-se igualmente na justiça, o direito à sucessão no condado de Santa Marta, entre D. Bernardino Sarmiento e o sobrinho Francisco, casado com a dita Constanza de Zúñiga[24]. Os Soutomaior estarão ao lado deste último, ou não tivesse D. Bernardino pactuado com o arcebispo Fonseca, a morte de Pedro Madruga, às mãos traiçoeiras de outro Sarmiento, senhor de Sobroso[25]! Em 1476 Bernardino cede, recebendo à posteriori e à guisa de compensação, o título de Conde de Ribadavia, prolongando-se no entanto o pleito pelas vilas de Ribadavia, Ortigueira e Mucientes até aos anos noventa, a instâncias da própria D. Constanza de Zúñiga, então já viúva[26]. Também a vila de Salvaterra foi disputada nesta época, entre os condes de Ribadavia e Caminha, sendo de crer que estes últimos terão recebido o apoio da condessa de Santa Marta, “(…) que se procuraba amigos y aliados en Galicia (…)”[27], tentando a todo o custo ganhar vantagem sobre o seu parente.

O comportamento da casa de Soutomaior que aqui fica analisado, deixa assim clara uma colagem à linhagem dos Zúñiga, sustentada no parentesco da casa de Biedma, e no apoio mútuo contra inimigos comuns: os Ulloa numa primeira fase, e os Sarmiento mais adiante. Não reflecte por isso, necessariamente, uma ponte genealógica próxima com D. Pedro Álvares, conde de Caminha, uma vez que muito antes da sua entrada em cena, já Fernan Yañez e Álvaro de Soutomaior acompanhavam com os daquela linhagem.

Acerta em cheio José García Oro, ao definir as elevadas aspirações de Pedro Madruga: “(…) lo que él se empeñó en ser y lo que pensó la gente que era. Su grandeza, real o pretendida, le valió también la suerte de poseer una biografia de corte hidalgo (…)”. Isso reflecte-se na forçada presença heráldica dos Zúñiga em Soutomaior, apesar daquele que foi o primeiro conde da linhagem, ter sido“(…) hijo de una madre pretendidamente desconocida (…)”![28] Reportando-se essa fonte primogénita, pelo menos ao tempo em que Pedro Madruga comandava os destinos da linhagem, mais de trinta anos se tinham já passado desde a morte de Fernan Yañez de Soutomaior, guardando segredo sobre a identidade da mulher em quem gerara o “bastardo”. Esse facto suscita inevitavelmente a hipótese, de ter sido o próprio Pedro Álvares de Soutomaior, a introduzir e difundir a sua ascendência materna – “real ou pretendida” – na Galiza (onde precisava de se afirmar e ganhar aliados, por exemplo, na pessoa do visconde de Monterrei), em Castela (onde os Zúñiga eram primeiros cavaleiros e estariam na linha da frente no apoio à princesa Juana contra os Católicos), ou em Portugal (onde o rei Afonso V o autorizara a casar com a filha de um dos seus influentes conselheiros, chefe de uma das mais antigas e nobres linhagens do reino). Sendo assim, facilmente se compreende que a geração proveniente do conde de Caminha – cujo filho mais velho atingiria a maioridade legal (14 anos) já em meados dos anos oitenta, a pouco tempo do desaparecimento do pai -, apresentasse um limitado conhecimento acerca da sua avó paterna, e sempre através da perspectiva transmitida pelo chefe da linhagem!


[1] Fernandez, M. C. (1992). La escultura funerária del siglo XV en la Iglesia de Santo Domingo de Tuy. Tuy. Museo y Archivo Diocesano, VI, pp. 177-182.

[2] Vila, S. (2010), pp. 298, 301.

[3] Arranz, F. A. (1948). Una importante falsificación de documentos a princípios del siglo XVI. Boletín del Museo Arqueológico Provincial de Orense, IV, pp. 59-125.

[4] Pericacho, J. G., Acevedo, F. N., & Salazar, M. V. (1794). Memorial ajustado del pleyto que se sigue en el Consejo y Sala de Justicia, entre Don Benito Fernando Correa, Marquês de Mós, Conde de San Bernardo, y Doña Maria Masones de Lima, Duquesa de Sotomayor, Marquesa de Tenorio y de Los Arcos. Madrid, España: Imprenta de la viuda de Don Joaquín Ibarra. Pode ler-se no índice o resumo seguinte: “Sumaria recibida por el Licenciado Romero sobre la falsedad del Testamento de Doña Mayor de Sotomayor y de otros instrumentos”.

[5] Arranz, F. A. (1948), pp. 64.

[6] Ayerbe, M. (1904). El Castillo de Marques de Mos en Sotomayor. Apuntes Históricos. (M. Ayerbe, Ed.) Madrid, España, pp. 135-136.

[7] Archivo Histórico Nacional. Relación. Informe de la descendencia de la casa de Sotomayor  (1er. Tercio del siglo XVI), Galicia: Diversos-Colecciones, Leg. 247, doc. 4.

[8] Ponte, V. (2008). Relación dalgunhas casas e liñaxes do Reino de Galiza (1ª ed.). (C. G. Pérez, Ed., & R. M. Outón, Trad.) Noia, Galicia: Editorial Toxosoutos, pp. 120-121.

[9] Carrillo de Huete, P. (2006). Crónica del Halconero de Juan II. (J. M. Carriazo, Ed.) Granada, España: Editorial Universidad de Granada, pp. 135.

[10] Zúñiga y Fonseca, B. Sumario de la descendência de los Condes de Monte Rey, Señores de la Casa de Viezma y Ulloa, Manuscrito, Colección Luis Salazar y Castro, pp. 6.

[11] García Oro, J. (1981). La Nobleza Gallega en la Baja Edad Media. Santiago de Compostela, Galicia: Bibliófilos Gallegos, pp. 222.

[12] Pardo Villar, A. (1942). Historia del Convento de Santo Domingo de Pontevedra. Pontevedra, Galicia: El Museo de Pontevedra, pp. 150. O autor transcreve uma doação de Fernan Yañez de Soutomaior, feita em 1433 ao convento, na qual identifica a mãe como “Doña Elvira de Bema”. Segundo Lavaña, nas notas ao Nobiliário do Conde D. Pedro, “Bema es lo mismo que Biedma (…)”.

[13] Vila, S. (2010), pp. 299.

[14] Archivo Histórico Provincial de Zaragoza. P 4-092-02. 6/08/1468. Leitura feita por Suso Vila e publicada em Vila, S. (2010), pp. 461-465.

[15] Museo de Pontevedra. Tumbo de Santo Domingo, 1423-1488. Col. Sampedro 21-6. (Pergaminho). 6/01/1477. Leitura feita por Suso Vila e publicada em Vila, S. (2010), pp. 470-472.

[16] García Oro, J. (1981), pp. 174. O autor cita excertos do testamento de Sancho de Ulloa, feito em 1480: “Pedro Alvarez de Sotomayor, com quien disputaba sobre bienes hereditários y «por enemistad le era enemigo»”.

[17] As casas de Belalcázar (Sotomayor) e Plasencia (Zúñiga) estavam aliadas desde princípios dos anos 50 do século XV, através do casamento de D. Alfonso de Sotomayor com D. Elvira de Zúñiga, sobrinha dos de Monterrei.

[18] Ponte, V. (2008), pp. 77.

[19] García Oro, J. (1981), pp. 96-97.

[20] Delgado, A. D. (2013). La Casa de Monterrey: Agregada a la Casa de Alba desde 1733. (U. C. Madrid, Ed.) Obtido em 12 de Maio de 2013, de Universidad Complutense de Madrid – Departamento de Historia Moderna – Tesis Doctorales: http://eprints.ucm.es/21468/1/T34471.pdf, pp. 133.

[21] García Oro, J. (1981), pp. 222.

[22] Ponte, V. (2008), pp. 121.

[23] Delgado, A. D. (2013), pp. 156-157.

[24] García Oro, J. (1981), pp. 108.

[25] Vila, S. (2010), pp. 197.

[26] García Oro, J. (1981), pp. 109.

[27] Ibidem, pp.109.

No rasto matricial do conde D. Pedro de Caminha (I) – «Dona nobre» ou «mulher vil». Indícios de um testamento

Soutomaior (Pontevedra)
Soutomaior (Pontevedra)

Nota introdutória

Insere-se o presente ensaio no vasto âmbito dos estudos, que desde 1898 pretendem fundamentar a origem galega de Cristóvão Colón, o descobridor do continente americano. Entre os diversos rumos propostos por quase meia centena de investigadores, sobressai hoje em dia o enunciado que o identifica com D. Pedro Álvares de Soutomaior, visconde na galega Tui, e conde na portuguesa Caminha. Leva a proposição cerca de três décadas, e sustenta-se – entre outros – num pilar fundamental: a incerteza da identidade materna deste último. Trata-se de matéria controversa, e da qual se desconhece à data, qualquer resenha de cariz plenário e abrangente. Um vazio eversivo no edifício da opinião. Esta premissa encerra por si só, a razão do exercício que segue.

“Dona nobre” ou “mulher vil”? – Indícios de um testamento

A identidade da mãe de Pedro Madruga mantém-se, ainda hoje, um mistério tão impenetrável, como a busca da origem de Colón, o almirante das índias.

Entre as esparsas citações dos próprios netos, a opinião de um cronista daqueles tempos, e as conclusões extraídas de alguns genealogistas de referência, brotou a inconsistência que hoje invalida a assunção de qualquer certeza, complicando, em absoluto, a tarefa de reconstrução desse capítulo gerador da vida do conde de Caminha.

De todas as conhecidas, a fonte mais antiga que a menciona, é o próprio testamento de quem a tomou por manceba, fosse por consentimento, ou mero recurso ao “direito de pernada” que então se praticava. Em Novembro de 1440, preparando-se para enfrentar o juízo final, Fernan Yañez de Soutomaior aliviava a sua consciência a esse respeito, ditando a seguinte manda: “(…) a Pero de Sotomaior mi fizo bastardo queyo ove de una muger que sabe bien su nombre y quien ella es Alfon Guadardans mi escudero – y el dicho Rodrigo de Deza mi sobrino quele den a el dicho mi fizo bastardo todas las cosas q menester oviere para se crear, y con q dependa em estudio porq es mi voluntad q sea Clerigo. et esto q sea fecho y see faga a bien vista de fray Estevan de Soutelo Mestre em S.ta theolosia y del dicho Alfon Guardardan. Yten mando q den ala madre del dicho Pedro mi fizo bastardo por el cargo q della tengo docientos frolines de oro y dela dicha ley y cuño de Aragon”.[1]

É claro o cuidado do testador em não revelar o nome da amásia. Menos explícitas se tornam as razões que a isso o moveram, deixando no ar a convicção de que aquela ligação amorosa sempre foi oculta, e apenas conhecida de alguns fiéis. De outro modo, careceria de sentido essa discrição revelada nas últimas vontades. Pode atribuir-se igualmente ao testador, a consciência do erro em que incorrera, assim como a necessidade que o mesmo lhe não sobrevivesse face à sociedade de então, conforme sugere Suso Vila na sua análise à “Casa de Soutomaior (1147-1532)”. Contudo, esse mesmo autor destaca, com estranheza, que não seria um comportamento muito habitual, nomeadamente se a mulher em questão, fosse donzela nobre[2]. Conforme explica baseando-se nas leis de “Las Siete Partidas” de Alfonso X, a uma criança nascida sob essas condições, se chamava “natural”, e podia, inclusive, herdar os bens paternos[3].

Essa situação, por si só, justificava a identificação da mãe, em prol do porvir do filho. No caso de Fernan Yañez mais ainda, na hora em que procurava alívio divino para um dos seus pecados terrenos, através do garante do futuro de Pedro, numa carreira eclesiástica. Contudo, à mãe omitiu-lhe o nome e, nas duas vezes que menciona o filho, não se coíbe a adjectivá-lo de “bastardo”, excluindo-o do direito a qualquer herança patrimonial, estabelecendo apenas uma renda com que se possa criar e estudar.

A explicação para estes factos, pode assumir-se à luz do que fica dito: a mãe de Pedro de Soutomaior seria de condição social inferior, situação altamente penalizante para um nobre de elevada hierarquia, e para um filho ilegítimo com futuro apontado à igreja.

A lei que tal regimentava encerrava o título XIV da Partida IV das “Siete Partidas Del ReY Don Alfonso el Sábio”, dedicado a “las otras mugeres que tienen los homes que non son de bendiciones”. Aqui se deixa a cópia integral desse texto particular, extraído da edição madrilena de 1807, cotejada pela Real Academia de la Historia:

“LEY III.

Quáles mugeres son las que non deben rescebir por barraganas los homes nobles et de grant linage.

 Illustres personæ son llamadas en latin las personas honradas et de grant guisa, et que son puestas en dignidades, asi como los reyes et los que decenden dellos, et los condes; et otrosi los que decenden dellos, et los otros homes honrados semejantes destos: e testos atales como quier que segunt las leyes pueden rescebir barraganas, tales mugeres hi ha que non deben rescebir, asi como la sierva ó hija de sierva, ni otrosi la que fuese aforrada nin su fija, nin juglaresa nin su fija, nin tabernera, nin regatera nin sus fijas, nin alchueta nin su fija, nin otra persona ninguna de aquellas que son llamadas viles por razon de si mesmas ó por razon de aquellos de que decendieron; ca non serie guisada cosa que la sangre de los nobles homes fuese esparcida nin ayuntada á tan viles mugeres. Et si alguno de los sobredichos ficiese contra esto, si hobiese fijo de tal muger vil, segunt las leyes non serie llamado fijo natural, ante serie llamado espurio, que quiere tanto decir como fornecino: et demas tal fijo como este non debe haber parte en los bienes de su padre, nin es el padre tenudo de criarle si non quisiere”.[4]

“Espúrio” define-se como “bastardo”, e perante o que acima se lê, não se assemelhava à definição de “natural” ou “não legítimo”, facto demonstrável pela leitura do período inicial, da primeira lei, do título seguinte das “Partidas”, onde Alfonso X discorre sobre a noção de “filhos não legítimos”:

“Naturales et non legítimos llamaron los sábios antiguos á los fijos que non nascen de casamiento segunt ley, asi como los que facen en las barraganas, et los fornecinos que nascen de adulterio, ó son fechos en parienta ó en mugeres de órden, et estos non son llamados naturales porque son fechos contra ley et contra razon natural.”[5]

Deslindado este facto, uma outra razão o confirma: a magra quantia legada. É opinião sustentada por Rodrigo Cota González, que “(…) parece la cantidad que se entrega como ayuda a una mujer sin linaje alguno ni gran fortuna”[6]. O autor de “Colón, Pontevedra, Caminha” baseia a afirmação, na equivalência do florim de ouro de Aragão, em relação ao maravedi, moedas correntes no tempo de Enrique IV, estimando aquele valor em 14 000 maravedis. Num ensaio acerca da eventual ligação de Pedro Madruga aos Hospitalários, estabeleci igualmente outra comparação, capaz de aferir a afirmação anterior, referindo então o dote matrimonial de uma nobre casadoura que, à época, podia ascender a um total cinquenta vezes superior![7]

Fica igualmente claro, face à transcrita lei sobre as barregãs adequadas a um homem nobre, que o presente testador optou por tomar a cargo a criação do filho, prescindindo assim da normativa que o desobrigava a tal. Acerca desta matéria, nada mais se pode extrair do referido testamento.

A existência de duas pedras de armas em partes diferentes da fortaleza-solar dos Soutomaior galegos, é a segunda fonte primária a considerar. Situa-se uma no seu muro exterior oeste, assinalando uma poterna; já a outra dá a direita (esquerda do observador) às armas próprias da linhagem, emparelhando com elas sobre o arco de entrada no paço. Exibem elementos heráldicos aparentemente estranhos à linhagem: uma banda, sobreposta por uma cadeia posta em orla. Sem qualquer reserva, trata-se do brasão de armas dos “Zúñiga”, ou “Stúñiga” como em Navarra se conheciam aqueles cavaleiros. O formato do escudo – flancos rectilíneos, ponta acentuada, e duas linhas côncavas a delimitar a parte superior do chefe -, de clara inspiração toledana, esteve em voga na península, ao tempo dos Reis Católicos e de D. Manuel de Portugal, abarcando cerca de quatro décadas (1475-1515 aprox.).

Pensa-se que a fábrica destes exemplares tenha sido ordenada por D. Pedro Álvares de Soutomaior (1468-1485), e poderá datar de princípios dos anos setenta do século XV, quando a fortaleza foi reconstruída, depois da parcial derrocada sofrida às mãos das milicias irmandiñas. Atendendo porém às características artísticas referidas, poderá também ser obra do segundo conde D. Álvaro (1485-1495), ou de seu irmão D. Diego que esteve na posse da fortaleza alguns anos entre 1496 e 1504, por mando dos Reis Católicos após pedido da mãe, a condessa D. Teresa de Távora. Para a maioria dos investigadores, como bem exemplifica a opinião de Jaime Garrido Rodríguez em “Fortalezas de la antigua província de Tuy, servem ainda hoje de prova material capaz de atestar que, embora não consigam referenciá-la documentalmente, decerto a mãe de Pedro de Soutomaior fora uma Zúñiga[8].

Soutomaior / Zúñiga (Soutomaior-Pontevedra)
Soutomaior / Zúñiga (Soutomaior-Pontevedra)

No entanto e face à omissa genealogia coeva, essa presença heráldica nos muros do castelo de Soutomaior pode meramente indiciar – da parte do seu mandante -, uma necessidade assertiva clara: o estabelecimento inequívoco de uma ponte entre a sua ascendência e a linhagem representada. A ser verdadeiro este pressuposto deve concluir-se, sem hesitação, que a origem materna de Pedro Madruga se questionava já, à época do seu regresso à Galiza como herdeiro legítimo da casa que fora do pai e do irmão. Note-se que até então no referido solar, não terá existido qualquer outro signo heráldico representativo de alianças matrimoniais (Aldán/Maldonado, Rodeiro, Mariño, Castro, Noboa, Xuárez/Deza, Biedma/Benavides, Mexia ou Ulloa), senão as faixas enxaquetadas que identificam os de Soutomaior, e só no dealbar do século XIX, como forma demonstrada de posse depois de resolvido o pleito a seu favor pela titularidade do imóvel, os Marqueses de Mós sobrepuseram o seu escudo de armas à entrada principal![9]

Retornando à forma como Fernan Yañez de Soutomaior deixou transparecer no testamento, a baixa condição da manceba, teremos forçosamente que – nesta questão das armas dos Zúñiga – levantar a hipótese de estarmos perante um falso testemunho, eventualmente surgido em 1468, durante todo o processo que conduziu à perfilhação de Pedro pelo irmão legítimo, Álvaro de Soutomaior, para que o bastardo lhe pudesse vir a suceder na casa. Ou posteriormente, na luta judicial por Salvaterra em que os Soutomaior tiveram o apoio dos Zúñiga, ou ainda quando D. Diego aspirava a ser cavaleiro alcantarino e lhe faltava a exigida nobreza pela parte da avó paterna, como adiante se verá.

A terceira fonte primária de relevo para a questão, é o testamento do segundo conde de Caminha, D. Álvaro de Soutomaior, datado de 1491. Nele surge pela primeira vez o suposto nome da mãe de Pedro Álvares de Soutomaior: “(…) de dicho Monesterio de S. Domingo [de Tui] onde está enterrada la dicha D.a Constanza de Zúñiga mi abuela”.[10]Por esta declaração, dir-se-ia afinal tratar-se de uma “dona” nobre, oriunda daquela influente linhagem, informação que condiz perfeitamente, com a inclusão das armas dos Zúñiga no património em que os seus descendentes iriam suceder. Ficam desse modo os investigadores, perante um dilema aparentemente insolúvel: mentia Fernan Yañez de Soutomaior – que nada tinha a perder -, referindo que aquele filho não legítimo era espúrio e não revelando o nome da mãe; ou mentiram os sucessores – que tudo podiam perder, caso a sua origem materna não fosse proveniente da nobreza?

Ou terá razão Suso Vila, ao propor uma versão intermédia de ambos os factos, avançando com a hipótese de Fernan Yañez ter omitido o nome de Constança, em atenção à família daquela que não estaria muito de acordo com a insultuosa relação?[11] Mas se assim fora, haveria necessidade de fustigar o ilegítimo, diminuindo-o à bastardia? Não chegaria nomeá-lo como “natural”, que o seria por direito, evitando da mesma forma, a identificação da mãe?

Pessoalmente e sustentando-me neste último parágrafo, acredito na sinceridade do primeiro testador – procurando desagravar-se às portas da morte -, desconfiando da nobre ascendência apregoada duas décadas mais tarde, porque óbvia em demasia na prosápia das suas intenções.


[1] Archivo Histórico Provincial de Zaragoza. S. IV.92-1/1. 9/11/1440. Leitura feita por Suso Vila e publicada em Vila, S. (2010). A casa de Soutomaior (1147-1532) (1ª ed.). Noia, Galicia: Editorial Toxosoutos, pp. 444-450.

[2] Ibidem, pp. 299.

[3] Ibidem, pp. 297.

[4] Alfonso X. (1807). Las siete partidas del rey don Alfonso el Sabio (Vol. III). Madrid, España: Real Academia de la Historia, pp. 86-87.

[5] Ibidem, pp. 87.

[6] Opinião expressa em correspondência privada com o autor, e devidamente consentida para citação.

[7] Sottomayor, A. P. (19 de Novembro de 2009). Pedro Madruga, Cavaleiro de São João de Rhodes (I). O tempo de provar nobreza. (F. A. Conchouso, Ed.) Obtido em 13 de Abril de 2012, de Colonianos:http://www.cristobal-colon.org/pedro-madruga-cavaleiro-de-são-joao-de-rhodes/

[8] Rodríguez, J. G. (2001). Fortalezas de la antigua província de Tuy (2ª ed.). Pontevedra, Galicia: Diputación Provincial de Pontevedra – Servicio de Publicaciones, pp. 79.

[9] Ibidem, pp. 65.

[10] Real Academia de la Historia. Madrid. Col. Salazar. M-60. Fol. 136. 23/03/1491. O documento foi publicado em Vila, S. (2010), pp. 493-494.

[11] Ibidem, pp. 299.

Pedro Madruga, Cavaleiro de São João de Rhodes (I) – o tempo de provar nobreza

Numa quinta dos arredores de Braga, o velho morgado Francisco Bernardo de Sá Sottomayor, regalava-se em juntar os netos ao seu redor, contando-lhes histórias do seu viver de Tenente de Cavalaria em luta contra os franceses, ou de legitimista combatendo os constitucionais do futuro Imperador do Brasil. Por vezes, no auge do relato, evocava a coragem e o sangue guerreiro que lhe corria nas veias, herança do seu antepassado Pedro Madruga! E os miúdos sonhavam, e “guerreavam-se” a brincar, em nome daquelas memórias distantes.

Agostinho Barbosa de Sottomayor, meu bisavô, tinha sete anos quando o Morgado se finou. Nunca esqueceu as aventuras do avô e, já velho, a doença levava-o a “águas” ao Balneário de Mondariz, no sul da Galiza. Ali, voltou a ouvir falar de Madruga, personagem lendária que ainda nos princípios do século XX encantava os bosques da região.

Relatou-o ao filho mais novo, António de Sequeira Sottomayor, e aquele tornou-se o genealogista de serviço da família durante as seis décadas que viveu. Nenhum dos filhos se despediu dele, sem também conhecer os “feitos” do Conde de Caminha… e as “barbáries” também, mas essas, “eram frutos dos tempos de antanho”!
Meu pai, Agostinho Neuparth de Sottomayor, levou-me aos 18 anos ao castelo do Madruga. Nunca alguém da família ali tinha voltado nas centúrias mais recentes. Não era então o monumento que hoje podemos apreciar; estava decrépito e ameaçava ruína interior. Pairava no ar, suspenso do restolho e silvados em seu redor… místico, mas ainda e assim mesmo, imponente.

Há um quarto de século que me dedico à história e genealogia dos Sotomayor, e isso diz bem da impressão que me causou aquela visita em Setembro de 1983. As minhas filhas, já jogaram “à apanhada” no castelo… e começam hoje também, a conhecer o avoengo Pedro Madruga!

Certo dia, Alfonso Philippot publicou La Identidad de Cristobal Cólon, afirmando que o Conde de Caminha e o Almirante do Mar Oceano, Colón, eram a mesma pessoa. Ri-me, mas quis saber do que se falava. Afinal… a tese fazia sentido, mas só parcialmente. Tudo o que se relacionava com a época declinante de Pedro Alvares de Soutomaior apontava, de facto, para uma possível transmutação de um no outro, em 1486. O estudo para clérigo também fazia sentido, tal como a frota dos Sotomayor em Pontevedra, e a sua ligação à cabotagem e à rota mercante do Levante. O parentesco de Frei Esteban de Soutelo, seu tutor, parecia um achado surpreendente, e pleno de consistência… contudo, e embora sem certezas, os documentos antigos referiam quase sempre a mãe de Pedro Madruga, como pertencente à casa de Monterrey, ou seja, como uma Zúñiga, e não uma Soutelo-Colón, de Poio.

Se nas suas últimas vontades, ditadas em 1440, o pai de Madruga omitiu o nome da sua amásia, acreditamos que o terá igualmente escamoteado o mais possível, enquanto viveu. Sabê-lo-iam de facto frei Esteban, o escudeiro Alfonso Garcia, os parentes próximos da incógnita, e o próprio Pedro Alvares que quando passou a dono e senhor de Soutomaior, em 1469, fez acrescentar na entrada do senhorio, o escudo de armas de Zúnigas, de sua pretensa mãe, em vez de Távoras, como se esperaria pelo seu casamento, numa clara atitude do que hoje em dia poderia ser considerado, “marketing publicitário”!

Porque mentia Madruga? Perguntei-o a Philippot, cuja resposta não me satisfez. Desse modo, pouco convencido, passei o Colón-Madruga à gaveta das recordações.
Volvido ano e meio, Rodrigo Cota apresentou a crónica burlesca de Francesillo. Reabri a “gaveta”; voltei a querer saber o que se passava: afinal, um achado de princípios do século XVI, não poderia ser ignorado. A leitura que então fiz, cimentou o que já aceitara em Philippot, mas a questão de base mantinha-se em aberto; também a coloquei a Rodrigo Cota. Respondeu-me como é seu apanágio: claro, sucinto e pleno de lógica. Madruga mentia para apresentar uma linhagem de nobreza!

As grandes ideias, são quase sempre “ovos de Colombo”, e desse modo pude reequacionar toda a teoria de Philippot acerca do nascimento de Pedro Alvares de Soutomaior, para mim até então, o grande “calcanhar de Aquiles” de todo o conceito. Como chave-mestra, a Ordem de São João de Jerusalém, também chamada Ordem do Hospital de São João, ou mais geralmente, de Rodes ou de Malta.

Gaspar Massó no seu Pedro Madruga de Soutomayor, caudillo feudal, afirma na página 25, a propósito da confirmação dos títulos de Visconde de Tui e Mariscal de Baiona, que o Conde de Caminha pertencia àquela Ordem militar e religiosa; o investigador português Luiz de Mello Vaz de São Payo, recentemente falecido e até então colaborador activo na revista “Filermo” – publicação oficial da Assembleia dos Cavaleiros Portugueses da Ordem Soberana de Malta – , instituição a que pertencia, não estranhou a afirmação de Massó, acrescentando até que os referidos títulos lhe tinham sido reconhecidos quando Madruga “já era cavaleiro do Hospital de São João de Jerusalém (Rodes)”, como se pode ler na página 77 de Sottomayor Mui Nobre, editado em 1999.

Sabemos também, graças a Suso Vila Pérez e ao seu estudo sobre A cidade de Tui durante a Baixa Idade Media, vencedor do segundo prémio História Medieval de Galiza e Portugal em 2008, que à referida Ordem militar, pertenciam nos séculos XIV-XV as comendas de Toroño e Mourentán, no bispado de Tui, cujas fronteiras provocaram conflitos jurisdicionais entre a Ordem de São João e o Bispado, prontamente resolvidos em 1460, com vantagem para o Cabido tudense, entre Álvaro Paes de Soutomaior – o encomendeiro irmão de Pedro Alvares – e o comendador Frei Sueiro de Nogueirol.

Galindo Romeo já esclarecera antes, em 1923, com Tuy en la baja Edad Media que Toroño designava “toda a terra do bispado de Tui não submetida ao senhorio episcopal”, e pela Nobleza gallega que José Garcia Oro deu à estampa em 1981, sabíamos que Paio Sorredea de Soutomaior fora Meirinho daqueles territórios até ao seu falecimento que Suso Vila situa em 1425, sucedendo-lhe o genro, Garcia Sarmiento, senhor de Sobroso, futuro alvo político-militar de Pedro Madruga.
O historial da Ordem de São João revela que em cada lugar onde se instalavam, os Hospitalários começavam por fundar um hospital, logo seguido por um hospício, e só depois se preocupavam com a sua defesa ou fortificação. Segundo Adrián Arcaz Pozo, tratando da Implantación y desarrollo territorial de la Orden Militar de San Juan de Jerusalén en Galicia (siglos XII-XV), as rotas da peregrinação jacobea foram o cerne aglutinador das comendas e instituições hospitalárias, “facultando ao peregrino hospedagem e assistência nos seus hospitais e albergarias que se encontravam espalhadas, tanto nas desoladas e ásperas montanhas, como dentro das povoações”. No século XV, existiam pelo menos em Tui, o Hospital de São João (dos Gafos), e o Hospital de Pobres e Peregrinos, o que indicia também a presença continuada na região, dos cavaleiros hospitalários.

É precisamente tratando de um aforamento relativo a esta última instituição que a 15 de Fevereiro de 1458 se testemunha, na Edición e estudo escriptolóxico do Tombo do Hospital dos Pobres de Tui que Xulián Maure Rivas publicou, a presença de Pedro Álvares de Soutomaior no claustro da Catedral tudense, ao lado do alcaide da cidade, notários e outras testemunhas. Chama-se-lhe então “discreto varom”, o que prova a sua actuação enquanto representante do Cabido catedralício. Outros documentos apresentados por Suso Vila Pérez em 2008, provam que entre 1460 e 1463, Pedro Álvares era cónego e pertencia ao Cabido tudense, embora segundo aquele investigador, “Pedro não se interessasse muito pelo Cabido”, fazendo-se representar amiúde pelo criado Pêro de Sevilla, de família imigrante da capital andaluza, onde Colón viverá os anos mais relevantes da sua vida.

Extintos os Templários, reza a história que os Hospitalários lhes herdaram senhorios e comendas, um pouco por todo o mundo conhecido. Em Portugal, assim não foi. Dinis, o Rei Lavrador, “tirou da cartola” a Ordem de Cristo, e os cavaleiros de São João perderam poder até ao reinado do “Africano” Afonso V que os relançou e muito beneficiou. Se acaso ainda o não era enquanto serviu o irmão e o Cabido de Tui, por certo Pedro Madruga cavalgou nas hostes das milícias do hospital, ao cair nas graças daquele rei português, de quem teve sempre o maior apoio e amizade.
Qualquer que tenha sido o percurso do futuro Conde de Caminha entre os anos 50 e 60 do século XV, teve de fazer prova da nobreza “a foro de Espanha” dos seus quatro costados, para poder ingressar como cavaleiro secular na referida Ordem, conforme bem esclarece Fernando Gonzalez-Doria no Diccionario Heráldico y Nobiliário, tratando da “Orden Militar de San Juan de Jerusalén”. Os Soutelo dificilmente cumpriam os requisitos, e os Colón eram essencialmente carpinteiros e mareantes.
Um acordo de linhagem pode bem ter sido o ponto de apoio desta mentira tão fundamental. Álvaro Paes, o último herdeiro legítimo e representante da estirpe dos Alvares de Soutomaior, de Toroño, que senhoreavam, ainda e sempre, o solar de onde brotou a casta, conviveu largo tempo na sua infância e adolescência, com seu parente Alfonso, o filho favorito do Mestre de Alcântara D. Gutierre de Sotomayor. Seriam bem próximas as suas idades, e ambos cresceram na Corte, enquanto donzéis de João II de Castela. É o professor universitário de Córdoba Emílio Cabrera Muñoz quem afirma, na página 180 do seu estudo El Condado de Belalcázar (1444-1518), que durante os anos 50, época do seu estratégico enlace com D. Elvira de Zúñiga, Alfonso se passou a apelidar “Alvares” de Sotomayor, facto que o académico atribuía a uma homenagem de Alfonso ao sogro, D. Álvaro de Zúñiga, Conde de Plasencia.
Outra leitura dos factos, permite entrever uma procura de paridade na legitimidade dos Sotomayor da Extremadura, face aos seus homónimos da Galiza. Como moeda de troca, reforçavam-se os Soutomaior de Tui, conseguindo para o seu bastardo Pedro Álvares, a entrada na Ordem de São João, validada num parentesco próximo, tacitamente aceite entre ambas as linhagens, mas sempre envolto em confusa neblina, como o próprio Vasco de Aponte nos transmite na sua Relación dalgunhas casas e linãxes do reino de Galiza, na página 120 da edição de 2008 de Clodio González Pérez, relatando o que sobre esse assunto se conhecia na época, da seguinte maneira: “(…) Pedro Alvarez de Soutomaior era bastardo natural que o tivera seu pai Fernán Eáns dunha irmã, curmá ou sobriña da condesa de Ribadavia, a que morreu a lanzadas”.
José Garcia Oro na obra supra-citada, revela, por acréscimo, que entre os Soutomaior e os Zúñiga existia uma relação de parentesco muito próximo, documentando nas páginas 95 e 222, respectivamente, que Álvaro de Soutomaior se dirigia a D. Pedro e a D. Juan de Zúñiga, de Monterrey, com o tratamento de “mi Señor tio”. Por maioria de razão, deve concluir-se que da mesma forma consideraria a condessa de Santa Marta (Vasco de Aponte chama-lhe erradamente “de Ribadavia”), D. Teresa, irmã destes. Esta situação prova, por si só, que a Pedro Madruga, irmão de Álvaro, bastava ser filho de Fernánd Yáñez de Soutomayor, para também ser visto na sua época como sobrinho da Condessa de Santa Marta. Não precisava de ser filho bastardo de uma qualquer “Zúñiga”, não documentada nas genealogias, como muito bem anota Salazar y Castro à margem do testamento do primogénito do Madruga, também chamado Álvaro, documento datado de 1491, em que o testador menciona o sepulcro de sua suposta avó, na igreja do Convento de São Domingos de Tui: “(…) de dicho Monesterio de S. Domingo onde está enterrada la dicha D.a Constanza de Zúñiga mi abuela”. Equivocava-se Álvaro, ou enganara-o seu pai, bem como aos outros seus irmãos. No mosteiro em que Pedro Madruga se criou e que tão bem conhecia, está de facto sepultada uma dama, ao lado da arca tumular de um Soutomaior: só que se chamava Inês Álvares e foi mãe do segundo João Fernandes de Soutomaior, Bispo de Tui, conforme opinião de Suso Vila, no livro já citado, páginas 351 a 353.
A propósito ainda da suposta mãe do bastardo Pedro Álvares de Soutomaior, cabe nestas linhas a opinião de Rodrigo Cota, baseado na seguinte passagem do testamento de Fernánd Yáñez: “Yten mando q den ala madre del dicho Pedro mi fizo bastardo por el cargo q della tengo docientos frolines de oro y dela dicha ley y cuño de Aragon.” Baseado na equivalência do florin de ouro em relação ao maravedi, moedas correntes no tempo de Enrique IV, o autor de Colón, Pontevedra, Caminha, estima o valor legado, em 14 000 maravedis, magra quantia para um Soutomaior doar a uma Zúñiga, à laia de dote; “más bien parece la cantidad que se entrega como ayuda a una mujer sin linaje alguno ni gran fortuna”. Tomemos como ponto de comparação que o dote de uma nobre casadoura por essas datas, valia cerca de cinquenta vezes mais, como se deduz do contrato de casamento de Mecia Sarmiento com seu primo Francisco, filho dos Condes de Santa Marta.

Estreita era a relação entre os dois ramos dos Zúñigas: o de Monterrey e o de Plasencia. Após a referida morte prematura da condessa viúva de Santa Marta, em 1470, ficou órfão o pequeno Bernardino, cuja tutela, segundo Garcia Oro (página 105) logo foi atribuída ao Conde de Plasencia D. Álvaro de Zúñiga, sogro, como acima se viu, de Alfonso “Alvares” de Sotomayor. Informa Emílio Cabrera Muñoz no já mencionado estudo sobre o Condado de Belalcázar, páginas 182 a 186, que este Alfonso, por sua vez, também morreu cedo, em 1464, cabendo a tutela dos seus filhos à mulher, Elvira, e ao irmão desta, também chamado Álvaro de Zúñiga, Prior da Ordem de São João do Hospital em Castela.

Admita-se pois, à guisa de conclusão, que a este Álvaro poderá ter ficado a dever o então ainda eclesiástico Pedro Álvares de Soutomaior, a sua ascensão a cavaleiro da Ordem de São João do Hospital, após o necessário processo de admissão, devidamente sancionado pelos testemunhos dos Zúñiga de Monterrey e Plasencia, jurando um nebuloso parentesco capaz de garantir ao futuro Conde de Caminha, nobreza dos quatro costados.